Homenagem: União da Vitória, Moça Bonita

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Atualizado há 8 anos

Historiadores, contistas, poetas, pintores, são muitos os que retratam a origem do povoamento de União da Vitória.

Confesso, sempre admirei os versos do grande vulto de nossa cultura, Serapião do Nascimento, quando da inauguração da ponte ferroviária. Versos que ficaram para a posterioridade.

Neste dia 27 de março o Município comemora 126 anos.

Valho-me aqui daqueles versos para dar voos à imaginação. Sem pretender os louros aos quais faz jus o mestre, procuro com alguns dos vocábulos de primitivos habitantes dessas terras, fazer a minha história e dela a homenagem ao aniversário da cidade.

Moça bonita “Cunhã-porã”, índia Caingangue, nasceu no campo das árvores pintadas, “kalorê”.

Lugar de montes e montanhas, “apuãs”, cortado por grande quantidade de água, “iguassu”.

Tão grande que ela nem sabia onde estava à cabeceira do rio, “japyra”.

O pai, “jóg”, falava língua diferente, “ñunê”. Assim podia entender-se com a aldeia vizinha, “amandaba”, onde morava a tribo dos Xoclengues. Por isso a filha, “kocin”, conhecia língua diferente, “ñunê”.

Desde o tempo em que era menina, “cunhã-taí”, a índia admirava a estrela D’alva, “ara-sy”, o sol, “cuarassy”, a lua “jassy”, as árvores, “ybyras” e as flores, “potyras”, que cresciam no roçado, “jupyra”, próximo a sua choça.

Se o sol, “cuarassy” brilhava, moça bonita, “Cunhã-porã”, ficava com a pele do corpo mais escura. Para refrescar-se, borrifava água cristalina de pequena cachoeira “xambrê”. Ali ficava, olhando para o céu, “ybari” até noite, “yani”, chegar.

De tempo em tempo dias de chuva, “amandy”, elevavam o “iguassu” de tal forma que o pai, “jóg”, precisava mudar-se com a família, “kanhkã”, para longe do roçado, “jupyra”.

“Cunhã-porã” acreditava que dentro do “iguassu” havia uma cobra grande que levantava, e fazia as águas chegarem no roçado, “jupyra”.

Quando a cobra voltava ao leito do rio às águas baixavam e a família, “kanhkã”, retornava para a choça. Precisava da água e gostava de admirar o brilho do sol, “cuarassy” e o espelho da lua, “yacy-uaruá”.

Vez por outra, espiando pelas palmeiras, “jyssaras”, de onde tiravam palmito, a índia Kaingang enxergava homens fortes, “piatãs”, singrando as águas rio abaixo em grandes canoas, “igaras”. Eram uma, duas, três… Sempre carregadas de coisas que a índia desconhecia.

“Cunhã-porã” ficava curiosa: quem seriam os homens vigorosos, “piatãs”, que tinham sua nudez coberta e a cabeça, “acanga”, protegida por chapéu, “çoyaba”? Tão diferente daquele usado por seu irmão, “quibira”?

Moça bonita queria conhecer homem rijo, “piatã”.

O deus do amor, “rudá”, quando veio lua crescente, “kerexú”, atendeu o seu desejo.

Ela conheceu homem de respeito, “abaeté” e dele se enamorou.

A lua, “jacy”, mandava raios de luar, “jacy-aba”, para “abaeté” e “Cunhã-porã”, namorarem.

Nos passeios ele colhia flores, “potyras”, de cor branca, “tingás” e as oferecia para sua amada.

“Cunhã-porã”, vaidosamente, colocava uma ou outra flor, “potyra”, na cabeça, “acanga”, prendendo-a na cabeleira escura, sedosa e brilhante.

Muitos dias de sol, “cuaracy”, muitas noites de lua, “jassy”, vieram e voltaram.

Numa manhã, quando o clarão solar resplandecia e a índia levava o cesto de erva, “bruaca”, para fazer “caá”, infusão da erva, avistou muitos cavalos, “baguais”, alguns montados por homens sadios, “piatãs” atravessando o “iguassu”.

As águas estavam calmas e sempre que assim permaneciam, esta mesma cena se repetia.

Surpreendida pela frequência da entrada dos cavalos, “baguais”, na água teve vontade de saber o que acontecia lá no outro lado do “iguassu”.

Do monte, “apuã”, sentada num galho de guabiroveira para colher frutos, satisfez em parte sua curiosidade. Enxergou no alto, do outro lado, algumas construções diferentes da choça onde morava.

Mais luas chegando, baguais e baguais atravessando o “iguassu” e a curiosidade de “Cunhã-porã” aumentando.

Na entrada do inverno, as flores “potyras” amarelas e lilases, dos ipês embelezavam a paisagem.

“Cunhã-porã” aproveitava o sol “cuarassy”, já não tão forte, para sentir a amenidade da água.

Num inverno que chegou mais rigoroso, fazendo bater o queixo de frio, “aitataka”, toda família, “kanhkã” da índia, teve que buscar o sol, “cuaracy” mais longe.

“Cunhã-porã” não quis deixar o lugar onde nascera e vivera tão feliz.

Para sua tristeza, homem de respeito, “abaeté”, acompanhou a família, “kanhkã”, deixando seu amor, sua choça simples feita com folhas de palmeiras secas e o seu roçado, “jupyra”, de onde se alimentava.

Moça bonita sentiu muita solidão. Eram grandes as saudades da família “kanhkã” e do seu namorado.

Tudo fazia para consolar-se: nadava, pescava lambaris, jundiás, cascudos, colhia jabuticaba, araçá, bebia água da fonte, ouvia o canto dos sabiás, canários, das graúnas, admirava o bando de papagaios sobrevoando as araucárias e a erva mate.

Embrenhava-se pela mata para caçar, fazendo o trabalho que fora dos irmãos “quibira”. Flechava roedores paca e cateto que garantiam a carne nos dias frios pelos quais passava.

Mas a tristeza da saudade não a deixava.

Depois de muito tempo o frio foi embora. O sol, “cuarassy”, chegou bem forte e fez a índia decidir-se: ia para o outro lado das águas viver e encontrar, quem sabe, outro homem generoso, “abaeté”, com quem pudesse dividir uma nova choça.

Carregou seu cesto “bruaca”, não com ervas, mas as coisas que plantara para comer: mandioca, milho e partes de carne da paca que caçara na véspera.

Colocou um couro de jaguatirica, curtido por seu pai, “jóg” e cobriu tudo. Precisava proteger os alimentos.

Entrou nas águas e de braçada em braçada, cuidando do cesto, “bruaca”, chegou na outra margem, lugar por onde tantas vezes desceram cavalos, “baguais” e homens fortes, “piatãs”.

“Cunhã-porã” subiu por uma trilha e de longe voltou um olhar de adeus para o campo das árvores pintadas, “kaloré”. Desviou o caminho por onde vinham os cavalos “baguais” e entrou na floresta escura de cedros e pinheirais pisoteando folhas, saltando os troncos caídos, os arbustos e afundando os pés em banhados, caminhou até cansar-se.

Próxima a um riacho, “sanga”, parou para saciar a sede e alimentar-se da comida, “pebi’u” que levara. A sombra vinha dos galhos de jabuticabeiras por onde coavam raios de sol, “cuaracy”.

À sua passagem despertavam curicacas, “kure-aca” e as corujas acomodadas nos galhos dos pinheiros. Era mato cerrado.

Quando um graxaim ou uma capivara cortava-lhe o caminho a índia valia-se de uma flecha “uiba uí” para defender-se e garantir mais alimento.

O breu da noite era atenuado pelo pisca-pisca dos pirilampos, o silêncio quebrado pelo coachar dos sapos e trilar dos grilos.

Após muitos sóis, “cuaracys” e muitas luas, “jacys”, “Cunhã-porã” exaurida adormeceu no tronco de uma imbuia.

Era madrugada e a neblina ainda empanava sua visão.

De repente ouviu o relinchar de um cavalo, “bagual”. Em seguida o tropel se aproximando.

Assustada perscrutou, no vazio dos cedros e viu um homem branco, “cari”, aproximar-se.

A fragilidade da índia o emocionou. Receoso estendeu-lhe a mão e conduziu-a até seu rancho no povoado.

Muitos anos se passaram.

A desconfiança inicial de “Cunhã-porã” foi desaparecendo e entre ela e o homem branco, “cari”, nasceu grande e duradouro amor.

“Cunhã-porã” e o homem branco, “cari”, tiveram muitos filhos, “kocin”.

O povoado cresceu, vários casebres abrigaram famílias “kanhkã” convivendo em harmonia.

As crianças, “curumins”, aprendiam a fala do homem branco, “cari”. Podiam brincar os “curumins”, filhos de “Cunhã-porã” com filhos dos homens brancos, “cari”.

Os males que sentiam não eram tratados só com ervas pelo velho pajé, mas com remédios, que desconhecidos da índia, curavam.

“Cunhã-porã” já sexagenária do alto do “apoã”, monte onde homem branco “cari” construiu sua morada, observando o “iguassu”, o lugar onde em dia remoto fizera sua travessia, viu uma ponte, “yvyvovó”, como diria seu povo.

Sentiu naquele momento tão grande alegria que seu coração bateu mais forte.

Como tudo mudara!

Ela não sabia que um professor, grande poeta, em bela lembrança, exaltava a Cidade onde agora vivia, memorizando seus descendentes em versos tão significativos “…eis a cabocla bendita de pé no banco da glória… eis a União da Vitória”.

Therezinha Leony Wolff é membro fundador da Academia de Letras do Vale do Iguaçu, cadeira nº 20, patrono Yvonich Furlani, Membro da Academia de Cultura de Curitiba, Membro da Academia de Cultura Precursora da Expressão, patrono Orlando Milis