ESTUPRO: “Mulheres são historicamente mais vulneráveis”, afirma especialista

No Vale do Iguaçu casos aumentaram desde o ano passado

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Atualizado há 8 anos

Imagine uma xícara de chá. Alguém oferece para você, mas você não gosta de chá, então recusa. Essa pessoa insiste, diz que dedicou seu tempo naquilo e quer que tome. Você, mais uma vez, recusa. Não quer chá, não gosta. Mas a pessoa insiste, mais uma vez, e coloca a xícara na sua boca, à força. Ela não aceitou o não.

Agora, troque o chá pelo sexo.

Foi dessa forma, até um tanto didática, que um vídeo produzido por uma blogueira britânica em parceria com a produtora Blue Seat Studios, explicou o que é o estupro.

Na analogia da xícara de chá a palavra “consentimento” é apresentada como conceito-chave no debate sobre estupro.

GrXXficoXEstuproX01O estupro é a prática não consensual do sexo, imposta por violência ou ameaça de qualquer natureza. Qualquer forma de prática sexual sem consentimento de uma das partes, envolvendo ou não penetração, configura estupro.

Qualquer ato sexual praticado sem consentimento não é sexo: é violência.

A pessoa pode estar vestida de forma sensual, pode estar embriagada, alterada pelo uso de alguma droga, pode até ter começado o ato sexual, mas se dizer não, tem de parar por ali. Qualquer passo adiante, qualquer forma de continuar com aquilo é estupro.

Se conseguimos entender que quando “um não quer dois não fazem”, como é tão complicado entender o não do sexo? Para a historiadora e especialista em gênero Dulceli Tonet a maneira mais fácil de mudar esse cenário, sem dúvida, é pela educação. Isso, porque o que se aprende enquanto criança é reproduzido na vida adulta. E durante essa fase, inclusive de atuação no mercado de trabalho, os exemplos, os bons e os maus, serão naturalmente reproduzidos para terceiros, quase como um ciclo. “A nossa sociedade é patriarcal, se constituiu dessa forma. Pensando em termos de Brasil veio já da colonização, todo esse pensamento de uma estrutura familiar pautada na figura do homem como chefe da casa, ao qual as mulheres tem de se submeter à esses homens e esse homem, inclusive, pode usar da violência para manter sua autoridade. Isso foi se construindo no Brasil”, explica. “Por isso passar o conhecimento, educar, é uma das melhores formas de mudar esse cenário.”

No Vale do Iguaçu, conforme dados da 1ª e 2ª Vara Cível de União da Vitória, os casos só aumentaram desde o ano passado. E em boa parte deles as vítimas são mulheres. Entre inquéritos e ações penais, nas duas Varas, os números de janeiro a dezembro do ano passado somavam 31 casos de estupro de vulneráveis, quando envolve menores de idade. E outros 15 quando não vulneráveis.

Neste ano, somente de janeiro até julho, foram registrados dez casos de estupro e outros 30 de vulneráveis.

Nos dados estão registros de toda a Comarca, que abrange cinco municípios, além de União da Vitória.

É histórico…

Nas Ordenações Filipinas, de 1603, as primeiras ordenações brasileiras, já estava encrustado essa diferenciação de gênero. A ideia das mulheres sendo submissas aos homens e o homem como protetor. “E se veio na legislação é que a prática social era essa”, pontua Dulceli.

Nessa diferenciação o homem foi colocado como chefe da casa e a mulher deveria sair do poder parital – do pai – para o poder marital – do marido. “É, isso estava na Legislação. Nela a mulher foi entendida e colocada como parcialmente incapaz. Os incapazes eram as crianças, os indígenas e os loucos”, explica.

“Essa postura da sociedade mostra a diferenciação dos papéis sociais de gênero que dá um poder maior ao homem e uma submissão à mulher. Isso gera uma série de consequências, porque conforme essas pessoas foram sendo educadas durante o tempo. Nós fomos sendo educados ao longo do tempo, fez com que a gente criasse os mitos da masculinidade e da feminilidade”, fala.

Nos mitos da masculinidade o homem tem de ser forte, provedor, corajoso e dominador. Isso, em todas as áreas, na família, na política ou no trabalho. “Por isso que “menino não chora” e que a violência é uma forma de resolução de conflitos. Porque eles têm de decidir, estar no controle das decisões”, explica a professora.

GrXXficoXEstuproX02“Já a mulher é doce, passiva, delicada e submissa”, pontua. “Crescemos acreditando nessas posturas e isso faz com que quando o homem é desafiado em uma dessas questões ele gera a violência”, completa.

Nessa prática, ainda entra outra construção histórica. Em geral são mulheres as principais vítimas das violências, as mais vulneráveis, seguida das crianças e adolescentes.

“Historicamente as mulheres são mais vulneráveis. Porque é jogada para ela a culpa da violência, ela foi o motivo, ela cometeu o erro, nunca o homem”, comenta. Ainda conforme a historiadora a mulher será julgada pela violência que sofreu, justamente, porque a sociedade foi educada na cultura do homem forte/mulher submissa.

Dulceli cita sua tese de mestrado que estudou um caso de “defloramento” de uma adolescente de 16 anos na cidade de Castro (PR). Na história, a menina foi estuprada por um homem “da sociedade”, contudo, o processo de julgamento recaiu sobre a adolescente, pois ela, segundo a própria Justiça, não estava em condições de “se dar o respeito” antes do ato, por manter uma “vida duvidosa”. “No meio em que vive e cresce a menor não é de notar-se nem notável não ter ela, embora muito jovem, conservado a sua virgindade corporal e d’alma porque, divide ao meio em que vivia aos perniciosos exemplos da vida desregrada em que viviam sua mãe e irmãs, fatalmente a levariam como a levaram ao estado em que hoje se acha, o de ser mulher pública”, diz o juiz, em uma parte de sua argumentação.

Para a historiadora as vítimas de defloramento passavam por um longo processo vexatório. Suas vidas eram expostas, suas ações analisadas, suas famílias julgadas. “Essa culpabilização das vítimas era uma forma de tornar os casos exemplares de forma que outras jovens mulheres ao saberem das consequências dos desvios de conduta evitassem correr os mesmos riscos”. explica.

… e permanece

Em um de seus artigos Joanna Burigo, que é mestre em Gênero, Mídia e Cultura e publica na Carta Capital, já disse que “precisar explicar que qualquer ato sexual que acontece sem consentimento é estupro, ad infinitum, é evidência da permanência da cultura do estupro”.

Para Joanna a cultura do estupro é a cultura que normaliza a violência sexual. As pessoas não são ensinadas a não estuprar, mas sim ensinadas a não serem estupradas.

Segundo Joana, cultura do estupro é duvidar da vítima quando ela relata uma violência sexual. É relativizar a violência por causa do passado da vítima ou de sua vida sexual. É ser mais fácil acreditarmos em narrativas de uma suposta malícia inerente das mulheres do que lidarmos com o fato de que homens cometem um estupro.

“No momento que acatamos como normal recomendar às meninas e mulheres que não saiam de casa à noite, ou sozinhas, ou que usem roupas recatadas. Todas essas ações revelam o que chamamos de cultura de estupro porque todas normalizam que a responsabilidade pelo estupro é da vítima. Não é. O protagonista do estupro é o estuprador”, rebate.

Para ela a cultura do estupro é machista, e o machismo cria e mantém a cultura do estupro. “É machismo partir do pressuposto de que o que uma mulher revela sobre estupro é invenção. É machismo duvidar das mulheres por partir do pressuposto que uma declaração sobre estupro é falsa. Na cultura machista que sustenta a cultura do estupro, a voz das mulheres é tomada como dissimulação. Na cultura machista as mulheres são malignas (olá Eva, bruxas e súcubos do imaginário coletivo), e os homens são eternas vítimas de nossas calúnias”, escreve em seu artigo.

Depois, a vítima

Para a psicóloga Daniele Jasniewski as consequências de um estupro são irreversíveis. Para ela, embora se possam tratar os prejuízos psíquicos e emocionais decorrentes do abuso, eles jamais serão eliminados em sua totalidade. “Os danos permanecem como uma cicatriz no inconsciente e na alma, quando não, marcas físicas também podem ser percebidas. É possível viver de forma saudável e/ou ressignificar a vida após o fato, desde que a vítima receba um acompanhamento psicoterápico de boa qualidade, preferencialmente, tão logo o crime aconteça”, explica.

Ainda conforme a psicóloga as consequências de situações de abuso sexual atingem a todas as vítimas, independente de gênero ou idade. “Diferem, apenas, na forma como cada pessoa enfrentará tais fatos, mas as consequências serão sempre devastadoras”, reafirma.

*A tese de Dulceli estudou mais casos de defloramento entre 1890 a 1920.

Sinais

Quando acontece o abuso a vítima indica em seus gestos, modo de vestir ou ações, sinais que indicam que algo está errado. No caso das crianças é ainda mais evidente. Para Daniele cada vítima é um ser único e dessa forma reagirá de maneiras diferentes, mas de maneira geral, pode-se ficar atento aos principais sinais como medo exagerado de adultos; tristeza contínua; não raro as vítimas podem apresentar ideação suicida; comportamento sexual não compatível com a idade (masturbação frequente, muitas vezes em público); baixa autoestima; podem preferir isolar-se socialmente e baixar o rendimento escolar.