Respeitável público!

Atrás do picadeiro, famílias ligadas pela arte encaram os desafios de uma vida nômade e, muitas vezes, incerta. O brilho do palco ilumina os filhos do circo

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Atualizado há 10 anos

Por Mariana Honesko

David e sua trupe
David e sua trupe

As cortinas se abrem, as luzes se acendem e mais um espetáculo estreia em uma nova cidade. É o circo, que promete sorrisos e admiração a partir da apresentação de uma trupe formada por palhaços, trapezistas, mágicos e motoqueiros que se arriscam em um globo mortal. Mas, atrás de uma grande e articulada estrutura, histórias se mesclam. Famílias inteiras de artistas têm no circo sua vida. Ou vice-versa. “Tenho 35 anos e 35 anos de circo”, sorri o responsável pelo elenco do Circo Globo, David Pereira Carvalho. O espetáculo, que desembarcou em União da Vitória há uma semana e se despede no feriado de Tiradentes, acolheu o menino há mais de três décadas. Órfão, foi criado pelos tios, ambos do mundo circense, desde os dois anos. A arte entrou no seu sangue e magicamente passou para os cinco filhos, criados como ele, na estrada e no picadeiro. “É o melhor lugar para criar os filhos. A gente tem o nosso mundo. O que a gente faria lá fora?”, avalia.

Hellen deixou os palcos e abraçou a maternidade
Hellen deixou os palcos e abraçou a maternidade

Não há respostas certas. A única certeza é que os artistas do Globo, já em sua quarta geração, dão lição em como se viver com simplicidade, sem qualquer esboço de crise ou dúvidas. O respeito de David pelo palco marca os passos dos filhos. Três deles já arrancam aplausos do público. Deivid, de 15 anos, reveza-se: ora é o palhaço “Perozinho”, ora o malabarista que joga até seis aros ao ar e os pega com leveza. “O circo é tudo. Meu mundo”, sorri o adolescente, que ainda sente frio na barriga em algumas apresentações.

As lonas estreladas também representam muito para sua irmã. Vitória, de 12 anos, alcança o ponto mais alto da estrutura ao evoluir em tramas feitas de tecido. Flutuante, a cor negra da manta contrasta com sua pele mais clara. Lá, no alto, a artista encanta, sem medo de altura ou de qualquer movimento falso. O pai garante que tudo é resultado de muito ensaio e dedicação. Mas, há exceções. “O palhaço, por exemplo, vive de espírito. Ele não aprende”, explica.

A combinação de talentos traduzida em cores e atos no palco transforma-se em harmonia. São quase duas horas de espetáculo e uma jornada intensa no final de semana, quando até cinco sessões são apresentadas. A rotina é pesada mas encarada com total leveza. “Para quem vem assistir, o circo é uma higiene mental”, sorri David.

Deivid usa tinta para viver o palhaço: em minutos, caracterização está pronta
Deivid usa tinta para viver o palhaço: em minutos, caracterização está pronta

A vida como ela é

O Circo Globo é de Boa Esperança (PR) e uma das cinco versões da rede. Pelo país, outros quatro espetáculos diferentes se apresentam. No Globo, 15 artistas sobem ao palco e são assessorados por cerca de outros 30 membros, que atuam atrás das cortinas. São cozinheiros, técnicos e narradores que fazem um pouco de tudo. Até o elenco precisa trabalhar dobrado: quando descem do palco, correm para as tendas que comercializam lanches, brinquedos e bebidas. “São duas horas de muita correria”, explica David. No domingo, quando há três sessões, o trabalho que começa às 13 horas só termina depois da meia-noite. No dia seguinte, é preciso acordar cedo.

E que o digam as crianças. Da trupe, dez são menores e vão à escola. Aliás, enfrentar a maratona de adaptação é um dos malabarismos mais difíceis. “Primeiro eles pegam no nosso pé. Você é palhaço? O que você faz? Faz um pouco ai pra gente?”, sorri Deivid. “A gente está fazendo as coisas e já começam a perguntar de onde a gente é, o que fazemos?”, completa Vitória. A frequência escolar é uma obrigação legal mas, conforme o circo, cumprida com facilidade. “As crianças ocupam as vagas destinadas para quem é itinerante, tem histórico escolar. É difícil, mas possível. Eu fiz o Ensino Médio no circo”, comenta o responsável pela trupe.

Circo Globo fica em União da Vitória até o feriado de Tiradentes
Circo Globo fica em União da Vitória até o feriado de Tiradentes

A permanência na escola depende do tempo de exibição do espetáculo. A oscilação, que vai de uma ou duas semanas à dois, três meses, depende da participação do público: a recepção da cidade é o que define o tempo de estadia. Em União da Vitória, por exemplo, esta é a segunda participação do Globo. “Mas em 2012 nós percorremos quatro estados em um único ano”, sorri David. A mudança constante garante certidões de nascimento completamente distintas. David, por exemplo, é de Belo Horizonte. Dois de seus filhos, mineiros – mas não de BH – e três, paulistas. “Todos os lugares que paramos foram bons”, sorri.

A escolha das cidades para a exibição do espetáculo é decisão tomada com antecedência. Normalmente, o roteiro é fator decisivo. Das Cidades Irmãs, o Globo deve chegar em São Paulo mas, até lá, se apresenta em Curitiba e cidades próximas da capital paranaense. Toda a estrutura é transportada por caminhões próprios e, garante a equipe técnica, colocada em pé em apenas um dia. Os artistas e suas famílias viajam em trailers. “Nós temos dez trailers”, sorri David.

É uma comitiva e tanto e na casa dele, quem manda mesmo é Hellen, de 34 anos. A ex-mágica, filha de circenses, mantém a casa em ordem. O trailer é amplo, confortável, com TV e acesso à internet. As crianças dormem juntas ou próximas e o casal, sozinhos, no quarto só deles. O funcionamento do lar é como qualquer outra residência. A diferença é que a deles está sobre rodas. A rotina é igual: há horário para almoço, cuidado com a higiene, hora de fazer a lição. “Semana que vem eu vou visitar minha mãe (hoje só o pai atua no circo, em Olinda) mas já quero voltar. Isso aqui é uma vida nossa, do nosso jeito”, sorri.

No tempo de folga, os artistas cuidam de suas preferências e fazem o que tem vontade. O videogame está em quase todos os trailers. O grupo também aprecia uma “pelada” e, em União da Vitória, soube aproveitar bem o campo do São Bernardo, onde está instalado. “Vamos ao mercado, pagamos nossos carnês, passeamos”, sorri David.

Circo - CAPAQuando as cortinas se abrem

Não há maquiadores exclusivos mas com profissionalismo, os próprios artistas cuidam de sua aparência para ficarem – e fazerem – bonito no palco. A caracterização de palhaço, por exemplo, depende de pouca tinta e um pequeno espelho. Sem cerimônia, Deivid pinta os dedos e logo, seu rosto. Em minutos ele muda de identidade. Basta uma peruca e um macacão para ser chamado por outro nome.

Vitória é ainda mais rápida. Magra, o traje colorido, colado ao corpo, transforma a menina em uma moça de muita flexibilidade. As cortinas se abrem e eles estão prontos para mais um espetáculo.