CRÔNICA: “Ele pediu para eu ficar até mais tarde, e depois que todos foram embora tentou me beijar à força”

Pamela era estudante de Psicologia, e havia conseguido um trabalho para ajudar a pagar a faculdade. Estava animada com o primeiro emprego. Morava na época com a mãe, a qual com sua renda não conseguia custear o curso tão sonhado pela filha. Nos primeiros dias de trabalho ficou contente por ter várias colegas mulheres no escritório.

O chefe não estava sempre presente, e em uma de suas ausências uma delas alertou: “Cuide com ele, não fique sozinha, ele se perde nos elogios”. Pamela não entendeu muito bem o comentário, estava exultante com a possibilidade de receber um salário, começar a buscar sua autonomia, ajudar a mãe no pagamento das despesas da casa. Também não ligou para os comentários do chefe sobre a ‘beleza das meninas da equipe’, sobre o perfume, a maquiagem.

Quanto completou a primeira semana no emprego foi chamada na sua sala: “Chegou seu uniforme. Aqui todas têm que trabalhar com a identificação da equipe. Pode se trocar e voltar para sua mesa”.

“Ele pediu para que eu trocasse a camiseta ali mesmo na sala dele Doutor. Eu falei que iria até o banheiro, ele disse que não havia problema, que estava acostumado, e assim muito constrangida me troquei ali mesmo, voltando-me contra a parede. Ele fingia estar olhando os papéis sobre a mesa, enquanto me olhava”.

Pamela contou que conversou com as colegas, quando relataram que ele as impedia de levar o uniforme do trabalho para casa. Elas combinavam de chegar mais cedo, de se trocar juntas, mas o chefe sempre dava um jeito de entrar na sala, no banheiro, onde estivessem: “ele tirou todas as chaves das portas, vai entrando sem avisar, isso incomoda as meninas, mas todas precisam muito do trabalho, e acabaram se acostumando com as atitudes desrespeitosas do gestor”.

A empresa, renomada na cidade. O chefe, pessoa muito conhecida e influente, era casado, tinha duas filhas meninas adolescentes. “É o jeito dele, não faz por mal”, disse uma de suas colegas, tentando buscar uma justificativa para as condutas injustificáveis do empresário.

“Doutor Carlos, eu não tinha nem um mês no trabalho, quando ele pediu para conversar comigo no final do expediente. Falei para ele que não poderia ficar além do horário, pois perderia o ônibus da faculdade. Mas ele insistiu, falou que me daria carona, eu fiquei com receio, e permaneci no escritório, enquanto as colegas saiam”.

“Foi o pior dia da minha vida. Quando o escritório esvaziou me chamou na sua sala. O chefe começou a falar o quanto eu era linda, que namoraria comigo se não fosse casado. Eu baixei a cabeça, não conseguia olhar para ele. Falou de meu corpo, que tinha desejos desde o dia que me contratou. Quando me levantei para sair da sala, não percebi que ele se aproximou, me segurou pelo braço, e tentou me beijar à força”.

“Pensei em gritar, mas ninguém iria ouvir. Quando consegui me afastar dele saí correndo. Não consegui ir para a aula aquele dia, cheguei em casa chorando, não consegui contar para minha mãe, que ficou muito preocupada. Me senti culpada pelo que aconteceu. Quando olhei meu celular tinham várias mensagens dele, dizendo que entendi errado. Que não era para eu contar para ninguém, que iria me processar”.

“Eu não consegui voltar mais lá. Não dormi nem consegui comer desde que isso aconteceu. Quando contei para minha melhor amiga hoje cedo, ela falou que lhe conhecia, e me convenceu a te procurar. Eu não sei o que fazer. Me ajuda doutor”.

Pamela foi atendida por nossa equipe de psicologia, e ao final voltou conversar comigo. Decidiu fazer boletim de ocorrência na Delegacia de Polícia, conseguimos um advogado para lhe acompanhar sem custo, e no dia seguinte saiu uma decisão da Vara Criminal com a concessão de medida protetiva de afastamento.

O processo criminal foi bastante penoso. O acusado indicou como testemunhas as antigas colegas de trabalho. “Elas vão depor a favor dele, doutor Carlos. Elas precisam do emprego, têm família, não podem pedir demissão como eu fiz, também não têm coragem, pois todos na cidade o elogiam, ele é muito conhecido. Ninguém imagina o que ele faz com as funcionárias”.

Pamela me escrevia no WhatsApp quase toda semana. Foram longos meses de espera pela audiência e pelo julgamento. Ela precisou de atendimento médico, estava tomando medicamentos, e demorou até conseguir outro trabalho. Conseguimos nesse meio tempo contato com sua faculdade para que pudesse negociar a prorrogação do pagamento das mensalidades para que não precisasse trancar o curso.

Combinamos com Pamela que na véspera da audiência em que iria depor pudéssemos fazer novo atendimento psicológico, de forma a trabalhar sua ansiedade, também para fazer toda a orientação jurídica de como seria o ato judicial. “O advogado estará lá presente também doutor?”, e assim a tranquilizamos que o trabalho dele seria também de evitar constrangimentos, acima de tudo possibilitar que o ambiente da audiência fosse tranquilo e respeitoso.

No dia seguinte qual não foi a surpresa, quando me chamou no WhatsApp: “Doutor Carlos, meu advogado não compareceu. Fizeram perguntas ruins. Um homem de terno e gravata questionou se eu não me insinuava para o chefe. E no final falaram um monte de coisas lá que eu não entendi”.

Descobrimos depois que a equipe do defensor havia telefonado para Pamela pela manhã para perguntar se sua presença seria mesmo necessária na audiência. A jovem não atendeu as ligações porque no novo trabalho, seu telefone precisava ficar no silencioso. “Poderiam ter mandado mensagem, que eu conseguiria responder, mas só tentaram me ligar. Era um número desconhecido, eu não sabia que era dele”.

Com a perda da confiança no profissional conseguimos a troca de advogado, e o processo seguiu com novo procurador. Nos dias seguintes Pamela reconheceu o carro do ex-chefe passando na frente de sua casa, no ponto de ônibus em que esperava o transporte para a faculdade, o que lhe causou intenso sofrimento e medo. Precisou de atendimento médico, ficou dias em casa com atestado. Documentamos tudo, encaminhamos para o juiz criminal, e Pamela registrou novamente boletim de ocorrência pelo descumprimento da medida de afastamento.

Algumas semanas depois me procurou pessoalmente no fórum: “doutor Carlos, é possível eu desistir do processo? Eu não imaginava que aconteceria tudo isso. É só a minha palavra contra a dele. Eu vou perder doutor. Eu prefiro parar. Não quero mais levar o caso adiante”.

A violência contra a mulher não raro costuma causar um martírio grande no longo caminho percorrido após a ‘denúncia’. O desestímulo à procura por ajuda, a revitimização constante, a falta de confiança na ‘palavra da vítima’, tudo contribuiu para a manutenção da conduta sistemática de desrespeito, para a impunidade, e para a repetição da prática de violência pelos agressores.

Confesso que após ler os depoimentos e todo o processo tinha dúvida se poderia realmente acontecer a condenação do ex-chefe sobre os fatos graves pelo qual era acusado.

Quando recebeu a cópia da sentença fui a primeira pessoa que Pamela procurou: “Doutor Carlos, o senhor não vai acreditar, saiu a sentença. Condenação e indenização de cinco mil. Não acredito que consegui. Que ele nunca mais faça isso com outras mulheres. Obrigado por não desistir de mim”.

*o nome aqui utilizado é fictício.

 

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR)

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