Crônica: “Ela não consegue entrar na sala de aula Juiz”

Já há muitos anos faço visitas e palestras nas escolas da região. O Poder Judiciário precisa aproximar-se das pessoas e conhecer a realidade das comunidades atendidas. Não basta o julgamento dos processos judicias que recebemos todos os dias. Sentir de perto como vivem as pessoas, quais problemas as afligem, quais são as particularidades de cada localidade, e como podemos contribuir, não apenas por meio das decisões e sentenças judiciais para a transformação positiva da sociedade local é de fundamental importância para a realização de um trabalho minimamente satisfatório.

Crônica: "Ela não consegue entrar na sala de aula Juiz"

Nas visitas aos colégios são apresentadas pela direção, equipe pedagógica, professores e pelos próprios alunos, muitas situações que ainda demandarão um longo período de tempo para chegar até a justiça. E quando tal ocorre, não raro os problemas já estão bastante agravados, de difícil resolução.

Em uma fria manhã de outono, conversava com o diretor de uma escola estadual na sala da direção, o qual me contava da dificuldade para aumentar a carga horária de uma professora de apoio, diante das inúmeras demandas de alunos com condições bastante peculiares. Pedi para falar com a professora Márcia, que relatou: “eu trabalho fora do horário sem nada receber, mas não vou abandonar meus alunos. Eles precisam de uma atenção especial juiz”. Naquela mesma semana, após contato com o Núcleo Regional de Educação e a Secretaria Estadual de Educação, conseguimos ampliar a carga horária da professora Márcia, sem a necessidade de intervenção judicial.

O diretor e a professora convidaram para conhecer a sala de apoio, e lá conheci Luana, 14 anos, franzina, cabeça baixa, sozinha na sala, concentrada no livro que lia. Perguntei seu nome, não respondeu de imediato. Com a ajuda da professora Márcia, falou algumas poucas palavras, sem se mover da posição em que estava. Suas mãos estavam trêmulas.

A professora contou que ao receber Luana do ensino municipal, constava em seu histórico desde os primeiros anos do fundamental que não frequentava a sala de aula: “Já desde a escola do Município, ela não consegue entrar, e assim também foi em nosso colégio doutor”, relatou. “No início do ano letivo era necessário que sua mãe a acompanhasse aqui até a sala de apoio, sempre de mãos dadas. Sua mãe sentava ao lado dela na carteira, e assim elas permaneciam toda a manhã.”

Professora Márcia contou que ao longo das semanas, sua mãe passou a permanecer período menor de tempo junto com ela na sala de apoio, e conseguiram assim com que Luana adquirisse confiança para ficar sem a presença da mãe:

“Mas ela precisa entrar na escola com a mãe, e ainda não conseguimos inseri-la em sala de aula. Não fica de jeito nenhum, sua ansiedade aumenta bastante, mesmo com a presença minha ou da mãe. Então optamos por seguir mais um tempo aqui na sala de apoio, onde ela segue no seu ritmo, e não perde as matérias.”

A professora contou que não havia dificuldade de Luana no aprendizado, ao contrário. “Como ela não cursou as aulas de inglês na escola municipal, antes de começar as primeiras lições a entreguei em uma sexta-feira um livro de língua inglesa, expliquei o que era outro idioma, pedi para que se possível dessa uma olhada (sic) no final de semana, e segunda-feira começaríamos”.

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Juiz, você não vai acreditar. Eu não acreditei também, quando ela chegou na segunda-feira falando várias frases em inglês fluente. Ela pesquisou na internet durante o final de semana, e sozinha entendeu como funcionava o novo idioma”.

Ao me apresentar a Luana falei sobre a função do juiz da criança e adolescente, e perguntei se ela queria conhecer o fórum onde eu trabalhava. Ela não respondeu verbalmente, mas mesmo sem levantar seu rosto fixado no livro sobre a mesa, balançou a cabeça positivamente.

Na semana seguinte recebi o diretor, a professora Márcia, Luana e sua mãe, em minha sala no fórum. Luana entrou caminhando com dificuldade amparada por sua mãe, olhar sempre para baixo, e se sentaram à minha frente. Naquele dia contei de nosso esforço para que professora Márcia pudesse continuar a acompanhando, agora recebendo pelas horas-aula. Contei também várias histórias de outras meninas que já havia atendido naquela mesma sala. A mãe falou do orgulho que estava com a filha de concordar em fazer a visita. Combinamos todos que ela seguiria o plano para um dia quem sabe entrar na sala de aula sozinha, se assim fosse seu desejo. Era véspera de feriado de Páscoa e entreguei a ela no final da visita um grande ovo de chocolate. Foi a primeira vez que ela, com muita dificuldade, ainda com as mãos trêmulas, levantou um pouco a cabeça, e com voz baixa agradeceu:

“Muito obrigado”.

Meses depois, já no decorrer do segundo semestre, havia uma palestra minha agendada na mesma escola. Logo na chegada o diretor com largo sorriso me aguardava no corredor: “Juiz, não entra ainda no auditório. Quero que você fale com uma aluna nossa.”

A escola tem um corredor bem comprido, e lá no final vinha um grupo de meninas com uma passada acelerada. Quando se aproximaram, uma delas parou na minha frente, e bastante agitada falou: “oi Juiz, sou a Luana, lembra de mim?”, deu um rápido abraço e saiu correndo atrás das colegas. Eu segurei o choro de emoção, e quando olhei para o rosto do diretor este já enxugava as lágrimas em seu rosto.

Em seguida contou: “doutor, semana passada, eu vi a Luana dando uma ‘bronca’ na mãe na frente da escola, dizendo ‘pode ir embora, que daqui em diante eu sigo sozinha’”. “Eu nem lembro mais, quando foi a última vez que ela frequentou a sala de apoio. E ainda está só com notas boas juiz”.

Incrível também como algumas histórias se repetem. Início deste ano letivo fomos procurados no fórum por uma mãe. Após a entrevista com o setor de Psicologia conversei com ela que contou: “não sei o que está acontecendo com minha filha neste retorno das aulas após a pandemia. Ela não entra na sala de jeito nenhum. Fica nervosa, apreensiva, trêmula, já teve várias crises de ansiedade na escola.” Perguntei à mãe se poderia conversar com a filha, 14 anos de idade, e perguntei seu nome. “Pode sim claro, ela veio comigo. Ela se chama Luana.”

Após o início dos atendimentos psicológicos, enquanto aguardávamos ainda as avaliações médicas, a escola adaptou-se, e Luana com muito esforço passou a acompanhar algumas aulas da parte externa da sala, por uma parede de vidro.

Dias depois, porém, em razão da cobrança de uma professora na frente de toda a turma por receber ‘tratamento diferenciado’, e situações de bullying de colegas, regrediu, e não conseguiu mais assistir às aulas nem mesmo naquele espaço no corredor. O colégio sugeriu que ela continuasse as aulas no sistema remoto, recebendo as lições em casa.

“Não concordo” disse para a direção e equipe pedagógica quando os recebi no fórum. “Peço que avaliem abordar a professora e alunos que agiram de forma desrespeitosa com ela, enquanto aguardamos a avaliação e os laudos médicos, e que seja possibilitado a ela, quando se sentir confortável, assistir às aulas no ambiente do colégio, ainda que pela parede de vidro.”

E por mais uma coincidência do destino havia também uma palestra agendada nesta escola algumas semanas depois. Antes de me deslocar ao colégio fiz contato com a mãe, que me respondeu por mensagem no whatsapp: “Juiz, olha só (sic), a Luana está assistindo às aulas dentro da sala de aula novamente!!!”

No dia da palestra haviam várias turmas reunidas. Falei sobre bullying, violências, saúde mental, respondi perguntas dos alunos. Ao final de minha fala me dirigi ao centro do auditório, no meio dos alunos, onde Luana estava sentada acompanhando atentamente minha palestra, pedi que se levantasse, e disse a todos: “Peço licença para homenagear uma aluna muito especial”. Dei um forte abraço nela, quando a turma toda começou a aplaudir intensamente. Foi uma das salvas de palmas mais longas que já vi. Mais uma vez fui tomado pelo choro de emoção.

Não deu tempo nem sequer de recebermos as avaliações e os laudos médicos para que as ‘Luanas’ entrassem em sala de aula. Para nenhuma das ‘Luanas’ foi preciso uma decisão ou sentença, nem mesmo formar um processo judicial.

*os nomes aqui utilizados são fictícios, e foram usados de forma repetida porque também as duas alunas queatendi possuem exatamente o mesmo nome.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR)

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