Crônica: “Essa mãe precisa de uma nova chance, doutor!”

O afastamento definitivo de mãe e pai de seus filhos é umas das decisões mais sensíveis e doloridas que chegam às mãos dos juízes. Mesmo em famílias com extrema vulnerabilidade e não indicativo de mudança de comportamento dos pais, prática de violências contínuas, negligência e omissão de toda espécie, quase sempre se identifica mesmo assim afetividade por parte deles, mais ainda, um vínculo razoavelmente forte de afinidade por parte dos filhos para com quem os gerou.

Crônica: "Essa mãe precisa de uma nova chance, doutor!"

Quando uma decisão de destituição do poder familiar (antigamente a lei chamava de pátrio poder) dos pais é tomada pela justiça, perdendo estes para sempre o direito de convivência e criação dos filhos, há uma série de elementos e provas de que essa é a melhor opção para as crianças envolvidas, trazendo alguma esperança e alento a elas, já que o próximo passo será justamente a busca de uma família que poderá acolhê-los com segurança, carinho, amor, e todo o cuidado mínimo necessário para a criação de um filho.

Após acompanhamento contínuo e por longo tempo da família, e farta prova da omissão e negligência dos genitores, quando se aproxima do julgamento são raros os casos de suspensão do processo para nova tentativa de busca de melhora dos pais, porque muitas chances já foram ofertadas antes, sem mudança significativa de conduta.

E não foi diferente com Guiomar e Pedro. As filhas Ketlin e Mariana tinham na época 3 e 9 anos de idade. Já haviam sido acolhidas institucionalmente no abrigo por mais de uma vez em razão do alcoolismo crônico dos pais. A mãe Guiomar até mostrava ainda alguma tentativa de mudança de comportamento, inclusive manifestando concordância com o tratamento médico para a dependência. Já quanto ao pai, naquele momento do processo, não aceitava qualquer intervenção para melhora.

Ainda que apresentasse desejo de mudança, mesmo para Guiomar a situação era muito difícil e delicada. Chegou a ficar um período de 8 meses longe da bebida. Porém, quando de sua recaída, esta ocorreu da pior forma possível. Novo uso abusivo de álcool, e mais uma vez afastamento de Ketlin e Mariana, que voltaram para o abrigo.

Nestas situações a realidade costuma ser muito cruel. Por mais que novas chances sejam concedidas, a exposição dos filhos pelos pais a situações de risco acaba se repetindo. Ausência da escola, brigas diárias e xingamentos mútuos dos adultos alcoolizados, risco de agressões físicas a qualquer momento, e por consequências novos abrigamentos, que deixam a vida de pequenas crianças sem qualquer esperança de mudança e manutenção na família de origem.

No processo de Ketlin e Mariana, todos os profissionais que trabalhavam no acompanhamento da família manifestavam pelo afastamento definitivo das filhas, porque tudo já havia sido tentado para recuperação e mudança do comportamento de Pedro e Guiomar. Conselheiros tutelares, assistentes sociais e psicólogos das secretarias de assistência social e saúde, equipe do acolhimento institucional, equipe pericial do fórum, Promotor de Justiça. A conclusão era unânime quando o caso chegou próximo do final.

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Nesta última etapa do processo foi marcada a audiência para ouvir as testemunhas. E mais uma vez, todas elas opinaram pelo afastamento definitivo de Guiomar e Pedro das meninas. Depois de mais de 4 horas de audiência e longos depoimentos, nenhum deles indicava panorama de mudança, trazendo os testemunhos diversos motivos que os levavam a concluir que a única alternativa seria afastá-los para sempre das filhas.

No último depoimento do dia, que antecedia a sentença que seria divulgada logo adiante, ouvíamos a testemunha Sandra. Esta trabalhava na época no comando da associação de atendimento de casos de álcool e drogas. Sandra contou na audiência que o pai era uma pessoa fria, e que já havia inclusive “acostumado” com a possibilidade de perder as filhas. “Além de tudo ele é violento com a esposa, e o grande responsável por levar bebida para casa quando a situação está um pouco mais calma e controlada” ressaltou.

Já quanto à mãe, contudo, de forma surpreendente Sandra trouxe novas informações, apresentando depoimento firme no sentido de mudança recente: “A senhora Guiomar está frequentando o Alcoólicos Anônimos nas últimas semanas Doutor. Ela não falta mais, como fazia antigamente. Tem mostrado que quer recuperar as filhas, está fazendo um esforço pessoal muito grande que não costumo ver em outras famílias. Ela tem consciência que tem a doença, e que precisa continuar se tratando por muito tempo, muitos anos ainda, para seguir firme sem o uso de álcool”.

Perguntei para Sandra se o padrão não iria mais uma vez se repetir, com nova recaída no consumo de bebida. “Acredito que não Doutor.” A seguir de forma bastante convicta manifestou: “Juiz, essa mãe precisa receber essa nova chance. Eu confio nela e na sua recuperação. Não posso dizer que isso realmente vai acontecer. Mas tenho uma forte convicção e intuição de que ela vai mudar sim, e poderá ter o convívio com as filhas novamente.”

E pediu ao final do seu depoimento mais uma vez: “Doutor Carlos, essa mãe vai mudar! Peço que conceda uma nova oportunidade para Guiomar mostrar que pode ficar com as filhas”.

Uma decisão nesse sentido não é comum, porque a lei conduz as sentenças nestes casos para o melhor interesse das crianças envolvidas, não dos adultos. Os menores não podem esperar eternamente a mudança de comportamento dos pais. Crescer longe de uma família, abrigados indefinidamente, não é o caminho rotineiramente escolhido. O avanço da idade com o tempo de abrigamento é implacável, inclusive na diminuição significativa da chance de futura adoção.

De outro lado o depoimento foi muito tocante, e aliado à confiança que sempre tive no trabalho e na experiência de Sandra no atendimento de alcoolistas e dependentes químicos, mesmo se tratando de depoimento isolado, levou-me a suspender o processo naquele exato momento. A sentença que viria logo a seguir afastando Guiomar de Mariana e Ketlin para sempre não aconteceu.

E não poderia existir melhor e mais acertada decisão. Nas semanas seguintes foram liberadas as visitas da mãe para as filhas no abrigo, e a reaproximação levou algum tempo depois ao desacolhimento e volta para casa.

Guiomar seguiu firme nos encontros do AA e na frequência de consultas e atendimentos do CAPS, e meses adiante o processo foi julgado a seu favor. Quando soube da sentença pediu para visitar o fórum na companhia das filhas para agradecer.

Guiomar é um grande exemplo de que existindo força de vontade e perseverança é possível mudar. Por melhor que seja o acompanhamento do poder público o controle da doença exige essencialmente uma mudança pessoal e compromisso do alcoolista para controlar o vício e evitar recaídas. Todos os dias, sem exceção.

Guiomar é uma daquelas pessoas que me escrevem quase todos os dias. Conta tudo sobre sua vida. Sua rotina pessoal e profissional, os cursos que busca para aperfeiçoar sua formação e melhorar de trabalho e renda, os feitos e proezas e mesmo as dificuldades que as filhas passam ao longo de seu crescimento.

E acaba se tornando também onipresente. Vou palestrar na reunião de pais da escola, e Guiomar está na primeira fila. Executamos projeto de cidadania no bairro em que mora, ela chega no local antes de tudo começar. Sou convidado para apadrinhar projeto de geração de renda no SENAC e Guiomar é uma das cursistas. Sou chamado para falar aos frequentadores do AA e ela está lá presente acompanhando tudo atentamente.

Nos últimos anos sou marcado em todas as suas postagens no Facebook quando comemora suas pequenas (e também grandes) conquistas. Durante a pandemia conseguimos com um parceiro doar um computador para que as filhas pudessem assistir às aulas on-line de casa. Uma equipe de reportagem de telejornal fez cobertura das entregas das doações e lá estava Guiomar concedendo entrevista.

Quando de uma premiação ano passado do Projeto de Combate à Evasão Escolar pelo CNJ uma rede de televisão nacional fez um documentário, e Guiomar foi uma das escolhidas para contar sua história: “O Doutor Carlos exigiu que eu acompanhasse a vida escolar das minhas filhas, e que conseguisse um trabalho. E eu cumpri tudo que o juiz pediu” falou com seriedade.

Guiomar está trabalhando atualmente como cuidadora noturna de idosos que estão hospitalizados. Quando foi selecionada para trabalhar no censo do IBGE este ano eu fui a primeira pessoa que procurou no WhatsApp para contar: “Fui selecionada doutor. Vou me organizar agora porque vou ter menor tempo de sono, mas não vou de forma alguma perder essa oportunidade”.

Nesta semana seguinte me enviou foto com jaqueta do IBGE: “Na ativa Dr.” De pronto respondi: “Que orgulho!!!”, e Guiomar logo a seguir agradeceu: “Obrigada pela confiança doutor”.

Na última semana uma rede de supermercados parceira dos projetos de cidadania me chamou para auxiliar na indicação de adolescentes para vagas de jovem aprendiz para nova loja. Sua filha Mariana, que atualmente está com 16 anos, e participa de um projeto de nosso Cejusc (Centro de cidadania do fórum) chamado Fábrica de Oportunidades, foi uma de nossas encaminhadas para a seleção.

No final do dia recebi seu áudio no WhatsApp: “Doutor Carlos, eu não acredito que a Mariana vai trabalhar também. Ela está aqui chorando de alegria. E eu também. Muito obrigado! Deus tem sido tão bom com nós (sic)”.

*os nomes aqui utilizados são fictícios.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR)

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