Crônica: “Eu não quero eça vida mais pra mim” (SIC)

“deça vez eu vou melhorar juiz”. A mensagem foi enviada pelo Facebook da mãe. Antes escreveu o adolescente: “bom dia doutor Carlos aq é o kauan eu fui expulso da clinica por cigarro, senhor podia me ajudar a conseguir cerviço pq eu quero ocupa minha cabeça agradeço de coração” (sic). Atualmente com 16 anos de idade, quase 17, Kauan estava internado em uma clínica para tratamento devido à dependência.

Já usou maconha e cocaína, atualmente faz uso de crack (ou pedra como costumam falar). E cigarro: “cigarro não é droga juiz, eu queria fumar lá e não deixavam” me disse pessoalmente no fórum, após agendamento do seu atendimento. “Como você conseguiu o cigarro? Estava difícil seu autocontrole e precisou fumar? Ou fez isso por farra mesmo para provocar o pessoal lá?” perguntei. Kauan abriu um largo sorriso, nem precisou responder.

Antes de seguir para a clínica como transição para seu retorno para casa estava em um hospital psiquiátrico em regime de internação mais severa para desintoxicação. Foi a terceira internação de Kauan. E é a terceira vez que ao sair me procura e pede ajuda, dizendo que vai fazer o que for preciso para não ter recaída e ficar bem.

Durante o período de tratamento recebi no whatsapp da mãe um vídeo de Kauan em uma praia, correndo até a água do mar, onde as ondas quebravam. Mergulhou e voltou sorrindo até chegar próximo da câmera do celular. Foi um passeio promovido pela equipe que o acompanhava. A mãe mandou mensagem com o vídeo: “bom dia doutor, olhe o kauan na praia com a clinica tá muito feliz”, contando que ele nunca havia visto o mar.

Adolescentes dependentes químicos não raro têm família bastante ausente, negligente em todos os aspectos protetivos, de atenção, cuidado, orientação, por vezes são também os pais usuários, em algumas situações ambientes com traficância ou prática de outros crimes.

Kauan foi abandonado pelo pai logo após o nascimento. Atualmente, ele encontra-se preso. A mãe, no entanto, pessoa humilde e semianalfabeta, é muito presente em sua vida. Corre ao fórum, pede auxílio, comparece quando chamada, manda mensagens toda hora. Enquanto o filho passava pelo último período de internação a ajudamos a preparar um currículo (que nunca tinha feito antes), encaminhamos para algumas entrevistas de emprego, sendo chamada para trabalho em uma empresa terceirizada que faz serviço de limpeza em escolas.

Coincidentemente logo depois estive neste colégio em palestra com os alunos. Quando me viu em um dos corredores apressou o passo enquanto me chamava: “Juiz, lembra de mim, sou a mãe do Kauan, obrigado pelo trabalho que conseguiu para mim aqui.”

Conheci Kauan bem antes da mãe. Em uma tarde de inverno alguns anos atrás recebi mensagem de amigo que trabalha na Justiça Federal falando de um menino que estaria no centro da cidade pedindo dinheiro no sinaleiro (semáforo). Contou que tentou conversar com ele por duas vezes, mas o sinal abriu e não foi possível. Chamou o Conselho Tutelar, que não conseguiu se aproximar, saindo ele antes correndo. “Ele está a semana toda lá”  me repassou.

Não é nada comum felizmente em nossa região pessoas perambulando pelas ruas em razão do vício, ou mendigando dinheiro. Mesmo em épocas de maior crise social e econômica o trabalho da assistência social dos municípios tem conseguido evitar adultos, crianças e adolescentes em situação de rua. Daí a mensagem que recebi.

Nesse mesmo dia quando saí do trabalho passei pela avenida e pensei: “quem sabe não o encontro?!”. E ao chegar na esquina lá estava Kauan, que rapidamente com o sinal vermelho se aproximou da janela do carro: “consegue me ajudar com um dinheiro? Estou com fome.”

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“Qual seu nome?” rapidamente falei. Normalmente com essa pergunta alguns adolescentes que converso na rua assustam e se afastam. Outros inventam um nome qualquer. E até por isso atualmente mudei o jeito de puxar conversa. Mas a pergunta veio automático quando parei o carro. “Kauan” respondeu ele.

“E o nome completo?” “Kauan José da Silva Santos”  respondeu. O seu endereço qual é? E o nome de sua mãe? Está na escola?

Kauan respondeu tudo calmamente. O sinaleiro já havia ficado verde. Foram várias buzinadas atrás. Fiz um sinal com as mãos que não poderia seguir, liguei o pisca-alerta e segui a conversa. Antes de sair anotei os dados no celular, entreguei um valor em dinheiro para Kauan, e chegando à casa liguei para o Conselho Tutelar.

No dia seguinte, recebi um completo relatório. O conselho entregou Kauan para a mãe. Ela estava desesperada a sua procura. A família já era conhecida da rede de proteção da criança e adolescente. “Estão incluídos nos serviços e programas do CREAS e CRAS”, foi informado no relato, “porém não há aderência por Kauan. Há suspeita que vem fazendo uso de crack diariamente, tendo sido encaminhado para avaliação médica no CAPS”.

Kauan na época tinha 13 anos, e meu primeiro encontro com ele se deu pouco antes de sua primeira internação para tratamento.

O alcoolismo, a dependência química, e tudo que envolve o uso abusivo de álcool e outros tipos de drogas, são os desafios mais complexos que atendemos. Não há um caminho certo e matemático, cada indivíduo precisa ser compreendido e avaliado em suas particularidades, e reage de maneira diferente a estímulos e tratamentos iguais.

Somos muito procurados no setor de cidadania do fórum para questões ligadas ao vício, inclusive por famílias que pedem ajuda para adultos, muitos deles pais de crianças, classe média e alta inclusive, algumas vezes com bons empregos. Familiares já arrasados e esgotados pelas consequências do uso de drogas, dívidas com traficantes, ameaças e medo, interrupção do tratamento, violências de toda espécie (as quais são praticadas por eles e das quais são vítimas também), roubos da própria família, desalento e desesperança.

Nos atendimentos as famílias pedem de forma uníssona a internação compulsória do usuário, ou seja, sem a sua concordância, como se de forma quase milagrosa o período (normalmente de cerca de 3 meses) de tratamento médico hospitalar forçado fosse resolver todos os problemas. Talvez esteja embutido nesse desejo e pedido de socorro dos familiares além de alguma esperança de melhora, a necessidade de respirar pelo período de algumas semanas, recobrar forças para o retorno quando da alta médica.

E quando a saída nem sequer se dá pelo encaminhamento médico? Quando o retorno para casa ocorre pelo não cumprimento das regras e expulsão da clínica, como aconteceu com Kauan? Há esperança de melhora? No dia do retorno dessa terceira internação recebi mensagem de sua mãe: “doutor, o filho já está em casa. Me avisa certinho o que precisamos fazer. Vai dar tudo certo. Muito obrigado por tudo”.

*o nome aqui utilizado é fictício.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR).

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