Crônica: “Eu só fui atendido por mulheres aqui”

João e Mariana estiveram casados por 6 anos. Do casamento nasceu o filho Vitor, que estava com 4 anos de idade quando do processo de divórcio. O acordo que estabeleceu todas as condições da separação foi homologado sem a necessidade de processo judicial, formalizado em audiência prévia de mediação. No acerto a guarda compartilhada, permanecendo a residência base a casa da mãe, Mariana, com visitas do pai João aos finais de semana. Também ficou João responsável pelo acompanhamento da escolarização, questões de saúde, e outras necessidades de Vitor.

Porém, poucos meses após, o pai veio ao setor de cidadania do Cejusc de nosso fórum, procurando ajuda.

Na entrevista com o setor de Serviço Social e Psicologia, João relatou que estava ficando grande parte do tempo, durante os dias de semana também com o filho Vitor em sua casa, onde auxiliavam outros familiares nos seus cuidados. Também esclareceu que o filho passava por tratamento de saúde desde pequeno, sendo acompanhado pelos mesmos profissionais médicos. Relatou o pai, que a mãe Mariana havia iniciado um relacionamento há menos de dois meses, e estava programando a mudança para uma cidade com mais de 600km de distância.

Disse ainda João, no atendimento, que a mudança lhe preocupava muito porque o pequeno Vitor perderia todas as suas referências familiares, escolares, amizades, e mesmo dos profissionais de saúde que o atendiam, o que estava deixando todos muito ansiosos, inclusive o filho. Segundo o pai, após a separação a mãe afastou-se do convívio com Vitor, permanecendo pouco tempo com ele, deixando-o sempre aos cuidados de terceiros. Manifestou o pai inclusive preocupação, diante da importância do afeto e cuidados maternos.

Foi marcada nova audiência de mediação, mas não houve acordo entre pai e mãe.

Como a guarda era compartilhada, diante da divergência iniciou-se processo judicial. Argumentou o advogado do pai, que a mãe não estava preocupada com o bem-estar do filho, apenas com o dela mesma, agindo de forma impulsiva em razão de namoro que mal havia iniciado, e que assim praticaria verdadeira aventura com a mudança de cidade, sem qualquer planejamento. Pediu o pai que fosse fixada judicialmente a guarda exclusivamente a ele.

Como já havia atendimento com a produção de relatórios pelos setores de Serviço Social e Psicologia do CEJUSC, deferi liminarmente a mudança da guarda para o pai, e o impedimento da mãe de viajar com o filho, ao menos provisoriamente, seguindo assim as recomendações das técnicas que atenderam o caso.

A mãe Mariana foi intimada do processo judicial, e a ela também foi ofertado o atendimento pela equipe de acolhimento do CEJUSC. E qual não foi a surpresa quando recebi o relatório. A intervenção do fórum a fez mudar os planos, especialmente em prol do filho, de forma que pudesse manter o tratamento médico, ainda permanecer na mesma escola e com a mesma rotina: “desde que recebi a intimação não parei um só instante de pensar em tudo. Eu estava planejando o atendimento médico dele onde iria morar depois da mudança, nunca quis causar qualquer prejuízo ao Vitor. Mas refletindo nos últimos dias mudei de ideia, vou ficar aqui na cidade, onde ele já está acostumado com tudo. O bem-estar do meu filho é o que mais importa na minha vida. Quero ficar mais tempo com ele também”.

Quando a advogada de Mariana se manifestou no processo, contou de forma ainda mais detalhada como haviam sido aqueles últimos dias: “Mariana recebeu o termo de guarda pelo WhatsApp. Isso a deixou sem chão. A mãe não conseguiu mais dormir, alimentar-se, trabalhar direito, uma tristeza tomou conta de sua existência. Mariana não iria mudar-se repentinamente sem combinar a mudança com o pai. Mas a intenção de trocar de cidade dissipou-se, pois não consegue imaginar viver sem a presença do filho”. Como o pai estava obstando contato do filho com a mãe, o que me pareceu natural diante do receio da repentina mudança, pediu a advogada o retorno para a guarda compartilhada, de forma que pudessem seguir como haviam acordado consensualmente quando do divórcio.

E assim, especialmente diante do atendimento da equipe técnica do fórum, deliberei judicialmente em nova decisão liminar pelo retorno da guarda compartilhada entre mãe e pai.

O processo judicial seguiu, com algumas acusações recíprocas por meios dos seus advogados. Segundo João, a mãe realmente pretendia mudar de cidade, e não descartava ele com a reconsideração judicial seguisse ela seu intento. Já Mariana acusava o ex-marido de querer impedi-la de ter novos relacionamentos afetivos, em conduta que se configuraria na busca de controle sobre a vida da ex-esposa.

A verdade que mesmo após alguns desentendimentos sobre as visitas e a rotina do filho Vitor, e ocorrendo duas audiências para tentativa de conciliação que resultaram inicialmente infrutíferas, o acerto entre eles já havia ocorrido lá no começo do processo, quando as profissionais de nossa equipe atenderam João e Mariana. João apenas queria cuidar do bem-estar de Vitor. E Mariana pôde refletir com os atendimentos que nenhuma mudança ocorreria se tal não preservasse a integridade psicológica do filho, prioridade em sua vida.

E assim o processo encerrou-se sem a necessidade de maior alongamento, e mesmo da sentença judicial. João desistiu do pedido de guarda unilateral, e peticionaram no processo em conjunto os advogados de Mariana e João, manifestando-se pela volta da guarda compartilhada, como ocorria desde a separação, permanecendo a mãe residindo onde sempre viveu.

O processo de Vitor, João e Mariana me voltou à memória porque no início deste ano recebi um pedido de agendamento. A equipe me relatou que um pai queria falar diretamente comigo: “O processo dele terminou doutor Carlos. E faz bastante tempo já. Ele disse que é uma visita de agradecimento”.

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O atendimento foi marcado, e na hora agendada João entrou em minha sala com um sorriso. Sentou-se à minha frente, e pouco depois de iniciar a fala já estava em lágrimas: “Esse agradecimento deveria acontecer lá atrás já doutor Carlos. Eu estou devendo essa visita há cinco anos”.

E continuou: “Nós não conversamos antes porque meu processo não continuou e não foi preciso audiência com o senhor. Estou aqui hoje para lhe agradecer por todos os atendimentos que aqui tive com sua equipe. Eu só fui atendido por mulheres aqui doutor Carlos, no balcão, nas entrevistas, nas audiências de mediação”.

– “Antes, quando procurei ajuda com uma conselheira tutelar na época, fui muito maltratado. Ela não quis nem me ouvir. Falou que os homens têm que sofrer mesmo por tudo que fazem com as mulheres”.

– “Procurei outra profissional que repetiu a mesma conversa. Me disse que a mãe sempre tem a razão, o que aumentou muito meu sofrimento. Eu estava em desespero por perder o meu filho, que iria morar tão longe de mim, de seus outros familiares, de sua escola, dos profissionais que acompanhavam seu tratamento médico”. E completou: “Venho agradecer pela forma como aqui fui tratado. Sempre fui ouvido com respeito e atenção. Nunca fui julgado por qualquer das mulheres que aqui me atendeu. Com as intervenções de vocês todos nós amadurecemos. Eu sempre acompanhei seu trabalho, mas nunca imaginava que iria parar aqui no fórum para resolver uma questão tão importante em minha vida. Hoje venho lhe agradecer por fazer parte da minha vida e de meu filho”.

Sem segurar o choro ao final João pediu para me dar um abraço. Fizemos um vídeo que foi enviado ao Vitor. E na semana seguinte recebi o vídeo de resposta do Vitor no WhatsApp: “Oi doutor. Queria agradecer o que você fez por mim desde pequeno. Eu não lembro de tudo porque eu era bem pequenininho (sic). Qualquer hora eu vou aí, tá? Obrigado. Tchau!”

Por meio dessa crônica faço também um agradecimento, para toda minha equipe do Fórum da Vara da Família e CEJUSC, dos que atualmente fazem parte de nosso time, e daqueles que por aqui já passaram também. Especialmente para quem trabalhou no processo de Vitor, Mariana e João: Marcelle Rossa Psicóloga, Lucimara Amarantes Assistente Social, Helen Vaz Voraski Psicóloga do fórum na época, Pamela Endler Cubas gabinete judicial, Larissa Alcântara Pereira gabinete judicial, Cleidi Schnorr servidora do Cartório da Vara da Família, Vanessa Sesterhenn servidora do Cartório da Vara da Família, Mareli Pedron chefe do cartório da Vara da Família, Valcira Ferri Martins servidora do CEJUSC, Frank Bindemann servidor do cartório da Vara da Família, Sandra Konell mediadora, Hildegard Diesel Nunes mediadora na época, Karine Santos Levek então servidora do CEJUSC, Audrei Martins Rissi Psicóloga de nosso fórum na época, Jessica de Souza Czarnos então estagiária, Stéfani Schmitt então estagiária, Kamila Alves Pereira estagiária na época, Geovane Marcos Zortea então estagiário, Mateus Pedro Daldin estagiário na época, Isabelle Kunrath então estagiária, Diego Naumann então estagiário, Maria Fernanda Furtado Dorneles estagiária na época.

*os nomes aqui utilizados, com exceção da equipe do fórum, são fictícios.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR).

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