Crônica: “Foi Deus quem trouxe vocês aqui”

“Queremos Justiça”. A faixa de cobrança estava fixada no portão ao lado da entrada da escola. Foi um dos crimes mais graves já ocorridos na comarca. Em que pese a prisão do adolescente e mesmo já tendo sido julgado, com sentença condenatória, o “grito” de socorro da comunidade continuava em destaque no local.

“Juiz, não sabemos mais o que fazer. Até mesmo os professores estão temerosos!”

E as consequências para a escola não poderiam ser piores. Com o clima de revolta, desalento e medo, uma quantidade muito grande de alunos não estava mais frequentando as aulas. Além do temor natural de que outras situações parecidas pudessem ocorrer, havia ainda alunos que se utilizavam do clima de pavor para criar ainda mais tumulto, com ameaças de toda espécie.

Ao enviar a foto da faixa no aplicativo de meu celular, a equipe pedagógica da escola destacou: “Juiz, não sabemos mais o que fazer. Até mesmo os professores estão temerosos!”

Pedi à direção da escola que agendasse minha ida até o local para data próxima: “Quero que toda a comunidade escolar seja chamada, não somente alunas e alunos, mas também pais, mães. É importante que os professores que não tenham aula, no dia do meu comparecimento também estejam presentes” ressaltei.

Na época já havia reformatado a forma de trabalho, aproximando o Poder Judiciário local das pessoas, comparecendo no local onde vivem. O trabalho de prevenção é de grande importância para minimizar os efeitos perversos da demora judicial e mesmo da ineficiência do sistema de justiça. A presença constante, diretamente no local onde moram, estudam e trabalham é também um prestígio e demonstração concreta de atenção e cuidado com as comunidades que atendemos.

Solicitei auxílio e reforço da polícia militar, chamei a equipe para me acompanhar e nos deslocamos até a escola. Após um longo trecho de rodovia, passando pelo centro da cidade, seguimos em direção ao interior por estrada de chão. A caravana formada pelas viaturas da polícia à nossa frente, levantou uma poeira que quase impedia a visão à nossa frente.

Ao chegar no colégio estadual do campo, ao lado da faixa “Queremos Justiça”, estavam os nomes das vítimas, alunas de 14 e 15 anos.

No pátio da escola superlotação de alunos, pais, parentes e professores, todos sentados aguardando minha chegada. Quando entrei o burburinho sumiu e o silêncio tomou conta do local.

Tomei o microfone, cumprimentei todos, apresentei-me, e falei com firmeza:

“O pedido que consta na faixa ali, na porta da escola já foi atendido. A justiça foi feita, e com muita rapidez”, destaquei. “Após trabalho elogiável da polícia civil o crime e a autoria foram esclarecidos. O criminoso foi preso e apenas 12 dias de pois de receber o caso, realizei duas audiências, segui todos os ritos processuais, o acusado foi condenado por sentença à pena máxima e já foi transferido para onde vai cumprir a pena de prisão”.

Uma mãe, logo a seguir levantou a mão e emendou a pergunta sobre o tempo de pena, e se havia risco de o preso voltar à comunidade. Esclareci que nossa legislação não prevê a prisão perpétua nem pena de morte (desejo coletivo comum quando da prática de crimes graves), e que todos precisavam confiar na justiça e na pessoa do juiz que estava ali presente prestando contas do trabalho. “A polícia militar que me acompanha hoje permanecerá próxima da escola o tempo que for necessário, garantindo a segurança de todos os alunos e professores, para que a vida de todos vocês possa voltar ao normal”.

Era possível sentir a mudança do clima e sentimento do público à medida que falava. Respondi muitas outras perguntas, ao final agradeci a presença de todos e segui para o carro fazer o caminho de volta para o fórum. Ainda estava no trajeto de retorno, quando chegou a mensagem de agradecimento da diretora: “Nosso colégio funciona há muitas décadas doutor. É a primeira vez que um juiz pisa o pé nessa escola. Muito obrigado. Assim que o senhor saiu os pais tiraram a faixa da frente da escola.”

Nos dias seguintes chegou a informação de que a presença dos alunos voltou ao patamar normal de frequência.

Quando criamos e organizamos nosso projeto de “Combate à Evasão Escolar” em 2008, diminuímos em meses o prazo para que uma informação de abandono chegasse até o conhecimento do fórum. Com apoio e parceria do Ministério Público também reduzimos significativamente o tempo para o trâmite e resolução dos atos infracionais que envolvem adolescentes, o que contribuiu inclusive para redução drástica da criminalidade juvenil. Passamos também por meio de projetos de cidadania a atender de forma mais rápida crianças e adolescentes vítimas de violências de toda espécie.

Mas nada se compara à presença pessoal do juiz no seio da comunidade. É possível sentir e visualizar o aumento do crédito das próprias decisões judiciais e da percepção de justiça e respeito por quem vive muitas vezes muito distante daqueles que decidem os destinos das pessoas por meio de processos judiciais.

Anos atrás, nesta mesma cidade, promovemos uma audiência pública coletiva de atendimento das famílias de alunos evadidos, com a presença de mais de uma centena de pessoas, que lotavam auditório cedido por uma igreja.

Atendia uma mãe solteira que relatava a dificuldade para conseguir trabalho para sustentar a família, quando ouvi uma adolescente ressaltar em voz alta: “eu não quero saber de conversar com ninguém. Se for para contar o que está acontecendo comigo e porque estou faltando as aulas, só farei na presença do juiz”.

Pedi licença à mãe, levantei-me e aproximei da aluna: “olá, eu sou o juiz, Vamos conversar então?” Após o espanto inicial da minha presença no local a adolescente passou a falar sobre o bullying que sofria após sua gravidez inesperada, e das dificuldades que passava para conciliar a vida de jovem mãe com os estudos. “Nem os professores da escola me entendem juiz” afirmou.

Neste município, em outra localidade de zona rural, bastante distante do centro, organizamos uma primeira edição de projeto de promoção da cidadania chamado “Amigos do Povo”. Estava no dia do evento sem o terno e a gravata, apenas com a camiseta do projeto, observando a movimentação no local, em que mais de 20 entidades parceiras prestavam serviços os mais diversos de atendimento da população.

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Ao meu lado um servidor do fórum conversava com um pai aflito. A filha de 13 anos havia sido “levada” pelo namorado meses atrás contra a vontade da família para sua casa, em local distante, quando perderam o contato com ela. Ouvi atentamente o pai desabafar: “Nem sabemos exatamente onde estão. Já fizemos boletim de ocorrência, acionamos o conselho tutelar, que não pode atuar porque ela está em outra cidade, não sabemos se ela está bem, estamos todos desesperados”. “Quem dera o juiz também estivesse aqui hoje” afirmou o pai de forma desolada.

Ao me aproximar conversei com ele, e minutos após, eu e o Promotor de Justiça já utilizávamos um computador instalado no local para o projeto, quando elaborei uma decisão determinando a imediata busca e apreensão da adolescente. Com a impressão do mandado seguiu imediatamente o oficial de justiça, acompanhado do conselho tutelar e da polícia militar, até o município vizinho.

Ainda naquela tarde, antes mesmo do encerramento das atividades do projeto conversei novamente com o pai, já abraçado à filha que chorava tomado pela emoção: “foi Deus quem trouxe eu aqui hoje”, dizia ele repetidamente.

Quando alguém clama “por Justiça” não raro se está diante da última e vã esperança de socorro e atendimento do seu direito.

Felizmente ainda cedo na carreira da magistratura compreendi que a Justiça precisa ouvir as pessoas de forma atenta e respeitosamente, e sempre que possível no local onde vivem. A escuta, o cuidado e o acolhimento qualificados possuem um poder de transformação positiva muito grande na vida de quem já passou por toda forma de infortúnios. Muito mais que uma liminar ou uma sentença em um processo judicial.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR)

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