Crônica: “Juiz, preciso de sua ajuda pra sair de casa”

Umas das coisas mais legais na abertura de canal de contato que tenho atualmente com as pessoas que nos procuram é o recebimento do feedback. O retorno dos envolvidos, seja bom ou ruim, quase sempre vem. E nem precisa pedir. Como há uma situação de pertencimento, de proximidade e atenção, naturalmente aqueles que atendemos fazem questão de me trazer como as coisas estão mais adiante, por vezes logo após o atendimento, outras mais adiante ao longo dos meses que seguem.

Francieli, uma das Psicólogas do Cejusc, nosso centro de cidadania do fórum, que voltou a trabalhar conosco agora depois de graduada (já esteve na equipe por três anos durante a faculdade), em conversa no gabinete dias atrás questionou-me como isso iniciou: “Quando começaram a te agradecer, a te dizer como as coisas estão depois dos atendimentos doutor?”

“Foi automático. No exato momento em que possibilitei o contato amplo e irrestrito” respondi.

Ao longo da última década desenvolvemos diversos projetos de cidadania em apoio ao seguimento dos processos judiciais, também como forma de prevenção à judicialização, para evitar o longo e penoso caminho percorrido quando os casos são levados ao fórum. Nos projetos sempre fiz questão de comparecer, dialogar com os atendidos, visualizar e estar próximo daqueles que julgamos todos os dias.

Com a interrupção do atendimento presencial, no início da pandemia em 2020, estipulamos como meta estratégica de nosso trabalho buscar formas de não suspensão de qualquer atendimento ou atividade que antes promovíamos.

Também formatamos uma rede de acolhimento psicológico de emergência, diante dos efeitos bastante ruins que a pandemia trouxe para as pessoas, com a cessação de atividades profissionais, desemprego, suspensão de aulas presenciais nas escolas, distanciamento de familiares, amigos e do convívio com atividades de toda espécie, inclusive de lazer.

Para o atendimento da RAC – Rede de Ajuda Covid/Coronavírus, buscamos a capacitação da equipe com uma profissional de referência, a Psicóloga Marly Perrelli, especialista em atendimentos de situações de emergência. Fiz o curso junto com a equipe, e passei naturalmente a também revezar nos atendimentos, em regra on-line, por meio de nossas redes sociais.

Daí para a abertura de minhas redes pessoais de contato foi um rápido passo. E com essa possibilidade na frente daqueles que atendemos, mais velozmente ainda passaram a chegar, para além dos pedidos de ajuda, dúvida e socorro, também os feedbacks e os agradecimentos.

Muitos agradecimentos! Os mais emocionantes que se possa imaginar! Também claro algumas sugestões e reclamações, afinal quando se abre o espaço para o contato direto, as pessoas se sentem à vontade para trazer todo tipo de demanda e questionamento. De qualquer forma os agradecimentos são amplamente majoritários, felizmente.

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Juliano, 16 anos de idade, havia assistido a uma palestra minha em sua cidade, na escola que fica na zona rural perto de sua casa, no ano anterior. Quando me chamou no WhatsApp foi direto: “Preciso de ajuda pra sair de casa. Não aguento mais ficar aqui”. Ressaltou que a situação era urgente, que estava com pensamentos ruins, mas também não entrou em mais detalhes sobre o que estava acontecendo. A ideia de Juliano era morar com o primo, na cidade vizinha. O primo, casado e sem filhos, teria um quarto para recebê-lo e já havia manifestado concordância.

Pedi ao Conselho Tutelar que fosse até a residência verificar e prontamente responderam: “Ihh doutor, já conhecemos essa família. A situação lá não está boa,  Juliano e a mãe Mari Estela não estão se entendendo mesmo. A diretora da escola inclusive já reclamou disso para nós”.

No dia seguinte, com a ajuda/transporte do Conselho Tutelar recebi Juliano e a mãe Mari Estela em minha sala. Falei com eles em separado. Antes, quando passei pelo corredor do fórum, estavam sentados longe um do outro, não se falavam, nem se olhavam.

Juliano ressaltou que a decisão era definitiva. Não havia qualquer possibilidade de mudar de ideia: “se ficar lá vou acabar fazendo alguma besteira, ou vou fugir sozinho”. Não quis explicar seus motivos. Só falou que não era respeitado em casa, e que nunca mais voltaria. Também não conseguiu, a Psicóloga que o atendeu extrair mais informações neste primeiro encontro.

A mãe Mari Estela estava arrasada. Chorava copiosamente, dizia não entender o que estava acontecendo com o filho: “ele sempre foi um menino bom, estudioso, trabalhador, ajuda em casa. Agora só fica o dia todo fechado no quarto, não come direito, começou a faltar aula, desentendeu-se na escola, não conversa com mais ninguém em casa”.

A situação não era a ideal, mas foi inevitável a saída de Juliano. Naquele mesmo dia o conselho tutelar da outra cidade fez uma visita na casa do primo. Ele nem sabia do interesse de Juliano, mas se mostrou disposto a ajudar. O ambiente segundo o conselho era adequado para receber ao menos temporariamente Juliano.

Encaminhamos todos para atendimento pelas redes de proteção dos municípios, para que pudéssemos reaproximá-los, e até mesmo para melhor entender o que estava acontecendo. Não raro em situações como a de Juliano há violências bem pesadas no histórico pessoal, por vezes de natureza sexual, praticadas por pessoas próximas. Toda cautela também era necessária para não agravar ainda mais o conflito familiar e o psicológico de Juliano.

Com o tempo de permanência de Juliano na casa do primo tudo piorou. A esposa dele não concordou com o recebimento do novo morador em casa, exigiu de Mari Estela o pagamento de uma pensão alimentícia, e a discussão entre todos ficou bastante agressiva. Mari Estela não queria pagar qualquer pensão, pois entendia que isso iria causar a perda definitiva do filho. Juliano precisava da transferência escolar, e a mãe pelo mesmo motivo se negava a assinar.

Com toda essa situação, e mais a pressão e cobrança da esposa do primo com Juliano, este acabou por cortar todo tipo de contato com a família, bloqueando-a nas redes sociais.

Com o agravamento da situação Juliano pediu para vir ao fórum novamente, e foi nessa oportunidade que nossa Psicóloga conseguiu entender melhor suas aflições. Juliano possuía uma única irmã, dois anos mais nova, e o tratamento de pai e mãe com eles era muito diferente. Nas palavras de Juliano, “precisou desde cedo trabalhar na propriedade rural da família, enquanto a irmã apenas ajudava nas tarefas domésticas” (sic).

Juliano recebia tratamento firme do pai, era tratado como “adulto”, inclusive com cobranças exageradas e xingamentos, enquanto para a irmã todos os seus desejos e pedidos eram atendidos, sempre sendo tratada com cortesia e educação. A mãe Mari Estela era culpada de tudo, segundo Juliano, porque nada fazia a respeito.

O sofrimento de Juliano e a dificuldade de diálogo e compreensão familiar, causou um afastamento natural do pai e da mãe, e daí para a ansiedade e depressão tomar conta de tudo, ocorreu em um piscar de olhos.

Agora na nova cidade e casa, com a dificuldade para conseguir trabalho (pela idade) e ajudar o primo nas despesas, e verificando que a situação atual estava tão ruim quanto da época que ainda morava com a família, Juliano passou a aderir aos nossos encaminhamentos. Todo o núcleo familiar, o pai, a mãe Mari Estela, e a irmã, também precisaram ser abordados.

Mas a situação ainda era muito tensa. Juliano brigou na nova escola, discutiu com o diretor, a mãe precisou de atendimento de emergência com uma crise emocional e foi internada. Deliberada por decisão judicial a elaboração de plano de atendimento, passaram-se algumas semanas sem novos contatos comigo.

E qual não foi a surpresa quando em um sábado tarde da noite Mari Estela me chamou no WhatsApp: “o Juiz não vai acreditar. O Juliano voltou para casa. Ele me disse boa noite, me abraçou e se fechou no quarto, e acho que agora não vai embora mais Doutor” falou em áudio emocionada.

“Na segunda-feira eu te atualizo” completou Mari Estela. E já cedo na segunda seguinte lá estava sua mensagem: “tudo tranquilo, por enquanto”.

O tempo foi passando, os contatos da mãe cessaram novamente, e a atualização da família de Juliano passou a ocorrer pelo processo judicial que o atendia na Vara da Infância e Juventude. Ora relatórios positivos, ora não muito bons, alguns conflitos ainda na família e na escola.

Passados alguns meses, na última semana chamei a equipe do fórum: “precisamos atualizar a situação do Juliano. Peço que vejam no processo se a Promotoria de Justiça pediu algo ou se o Conselho Tutelar ou a escola nos atualizaram. Faz tempo já que não chegam mais informações”.

E nem houve tempo. Quando acordei pela manhã no dia seguinte, a mensagem marcava a hora, 5h35min, quando Mari Estela me escreveu:

“Bom dia doutor tudo bem

Só pra contar para o doutor que o Juliano esta com nós 

Esta madurecendo

Esta tudo bem

Graças a Deus

Obrigado” (sic)

*com exceção das Psicólogas, os nomes das envolvidas são fictícios.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR)

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