Crônica: “Juiz, você está sendo como um pai para mim”

“Você está fazendo coisas que meu pai não fez deus te abençoe sempre” (sic) completou Givanildo pelo “Messenger” do “Facebook”.

Crônica Juiz, você está sendo como uma pai para mim

Foto: reprodução

Ainda na infância, na companhia de seus irmãos, os quais foram abandonados em razão do alcoolismo dos pais, viveu Givanildo boa parte de sua infância e início da adolescência em abrigo para menores. Quando os profissionais da rede concluíram pela inviabilidade do retorno ao ambiente familiar, e diante da inexistência de pessoas próximas com vínculo afetivo com quem pudessem viver, com idade já avançada, o que dificulta encontrar pretendentes à adoção, o único elo que existia em suas vidas era entre eles mesmos.

A cidade onde viviam sempre apresentou muitos casos de abuso, quanto ao consumo de álcool. Quando tinha por volta de 10 ou 11 anos de idade Givanildo comentou comigo quando eu participava de um aniversário no abrigo que em sua casa nunca tinha bebido refrigerante: “como é bom isso aqui juiz, lá em casa meu pai sempre oferece pinga, é só isso que tem lá”, disse. “Eu não gosto porque tomei uma vez e deu muita dor de cabeça, e também vejo as besteiras que meu pai faz quando está bêbado, e não quero ser assim” completou.

Givanildo e seus irmãos ao longo de sua adolescência foram preparados pela equipe do município para ter autonomia. Anos após, quando as irmãs adolescentes estavam mais maduras, por decisão judicial, autorizei o Município a alugar uma casa para que iniciassem a vida fora do abrigo. Para auxiliar nossa equipe do fórum arrecadou dinheiro, compramos uma máquina de lavar (pedido deles), um micro-ondas, e diversos outros equipamentos para a casa. Para Givanildo dei um valor em dinheiro para que pudesse escolher o que comprar.

E após algumas semanas marquei uma visita para conhecer a casa. Lá chegando estava tudo muito limpo e organizado. Era início da tarde e todos se preparavam para sair para a escola, quando notei a falta de Givanildo. “Ele acabou de sair”, disse uma das irmãs. Quando voltávamos para a frente da casa uma delas gritou: “olha lá o Givanildo juiz!!”, e já no outro lado da rua estava ele em um cavalo, sem rédeas, sem sela ou estribo, cavalgando acelerado, com sua mochila nas costas. “Ele comprou com o dinheiro que ganhou do juiz”, completou.

Givanildo continuou estudando. As irmãs mais tarde pararam de estudar quando “casaram”. Duas delas tiveram filhos do relacionamento, uma delas precisou de nossa ajuda para se afastar do marido, logo após o nascimento do bebê, pois sofria violência do companheiro.

Já maior de idade Givanildo separou-se dos irmãos, e para buscar trabalho mudou-se de cidade, voltando a viver com a mãe, aquela de quem fora afastado anos atrás, pelo excesso de uso de álcool. “Chegou a hora de ajudar ela” me disse certa vez. Sem experiência e com dificuldade para conseguir emprego, foram “acolhidos” por “conhecidos”, como disseram à época.

Montamos um plano de atendimento com auxílio da secretaria de Assistência Social do novo município, e quando da primeira visita da equipe descobrimos que estavam morando na casa de um traficante. Nesse mesmo dia, Givanildo me procurou no Facebook quando relatou: “a coisa está feia aqui juiz, a cesta básica não deixaram nem a gente abrir e já levaram. Meu celular também ficou com ele, que agora quer que eu ajude a vender pedra (crack) no bairro.” E lá fomos nós, mais uma vez socorrer Givanildo.

Com auxílio de nossa equipe do CEJUSC (Centro de Cidadania do Fórum) conseguimos transporte para Givanildo voltar a morar com as irmãs, ajudamos a atualizar seu currículo, montamos um treinamento para a busca de emprego e preparo para as entrevistas, conseguimos com que voltasse para a escola, realizamos o encaminhamento (a seu pedido) para o alistamento militar.

Foi quando ele me enviou a mensagem fazendo referência ao seu pai. “Sempre você” disse ele, “eu não tenho nem palavras para agradecer, eu quero ser igual você, eu tenho um coração bom e quero ajudar as pessoas” ressaltou Givanildo, em mais um recomeço e reconstrução de sua ainda curta vida.

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Juliana, outra ex-acolhida institucional, de outro município, atualmente com 19 anos, quando iniciava um negócio próprio me escreveu um longo texto via whatsapp:

“Bom dia Doutor Carlos, tudo bem com o senhor? Quero compartilhar com o senhor mais uma grande conquista na minha vida… quero aproveitar e agradecer o senhor por tem e incentivado a lutar por um futuro, lembro quando eu queria desistir de lugar por um futuro e o senhor me chamou para conversar antes da festa junina que o fórum havia preparado para nós o senhor me contou um pouco da sua luta para conseguir chegar aonde está hoje, me mostrando que pra conseguir realizar seus sonhos não foi fácil mas que a persistência e a determinação não te deixaram desistir. … já se passaram praticamente 5 anos e só agora consegui entender o que quis dizer aquele dia e por que sempre me dizia sobre a vida adulta.”

Agora poucos dias atrás me chamou novamente, perguntei se estava tudo bem e respondeu:

“Não muito, eu acabei quebrando o vidro do balcão aqui na padaria e me cortei um pouco. Eu tô sozinha aqui, eu limpei. Eu consegui tirar os cacos que estavam dentro.”

Após uma rápida conversa, quando já estava um pouco mais calma, a convidei para fazer uma visita no fórum, ver uma foto dela que está na galeria que estou organizando em minha sala. Rapidamente Juliana retornou sobre o convite:

“Fico muito feliz que o senhor ainda lembre de mim. O senhor não sabe como isso me deixa muito feliz, de verdade. Toda vez que converso com o senhor uma esperança se renova dentro de mim.

Nós momentos como o de hoje que pareço estar sozinha, o senhor me apoia e me faz sentir que mesmo eu não estando mais na casa lar eu ainda posso contar com o senhor. Momentos como de agora que eu penso em desistir. Que percebo o quão sozinha eu estou. Que mesmo não tendo nenhuma família eu posso contar com o senhor. Muito obrigada Doutor” (sic).

Eu chamo o fenômeno do “elo de confiança e vínculo” criado pelo juiz em razão dos atendimentos de “paternidade (ou maternidade) institucional”. O processo judicial e os trâmites legais e burocráticos que seguimos são necessários e importantes, mas o essencial na busca da transformação e emancipação de pessoas que, ainda no início de sua trajetória de vida passam por momentos tão delicados e sensíveis é o olhar de respeito, empatia, alteridade e compaixão.

Sempre é possível fazer “algo a mais”. A atenção e o cuidado qualificado com pequenos infantes e adolescentes, mais que qualquer processo ou decisão judicial, permitem a transformação de realidades tão difíceis na efetiva concretização de seus sonhos. Ou ao menos, como lembrou certa vez o escritor Augusto Cury, “produzem a força necessária para tirá-los do lugar em que estão”.

*os nomes aqui utilizados são fictícios.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR).

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