Crônica: “mandaram eu vir aqui no fórum”

Diante do meu forte inconformismo com o estado de coisas que envolvem nossa sociedade e o próprio Poder Judiciário, a ineficácia e ineficiências muitas vezes mesmo das decisões e sentenças judiciais inclusive, procurei ao longo dos últimos anos formatar nosso trabalho de uma maneira diferente do modelo tradicional. Para além dos processos judiciais, mostra-se necessário que o juiz (gestor das unidades judiciárias, chamadas tradicionalmente de varas judiciais) possibilite não apenas a ampliação do ingresso das pessoas à proteção da justiça, mas também, e essencialmente, crie mecanismos de acompanhamento das pessoas enquanto o processo não termina, e também busque alternativas à forma tradicional de julgamento dos casos, mais condizente com o que o jurisdicionado (aquele que procura os fóruns) espera.

mandaram eu vir aqui no fórum

Muitas das providências que aqui adotamos foram medidas inovadoras, que inclusive causaram inicialmente uma estranheza e incompreensão dos próprios envolvidos, mais ainda dos profissionais que trabalham cotidianamente no sistema de justiça. Outras são repetições de práticas de sucesso, pesquisadas e adaptadas às realidades das comunidades que são abrangidas pelo nosso fórum.

Tudo ficou mais fácil quando o Conselho Nacional de Justiça escolheu como metas programáticas do Poder Judiciário brasileiro trabalhar sempre que possível de forma alternativa às sentenças (com priorização de mediações por exemplo), também incentivando maior participação da justiça na garantia dos direitos e da cidadania, com olhar mais humano, ainda o fortalecimento e a aproximação do judiciário com a sociedade, e principalmente também a prevenção de litígios, ou seja, evitar a necessidade do processo judicial.

Foi como se o CNJ, órgão de fiscalização e gestão nacional da Justiça, olhasse para o que já estávamos fazendo há alguns anos e nos dissesse: “Sigam firmes!! Esse é o caminho!!”

Entre as inúmeras medidas implementadas na Comarca de União da Vitória/PR estão a facilitação do acesso, e o contato direto com as pessoas, inclusive pelo próprio juiz. Para isso mudei inclusive minha forma de conversar e atender o público que nos procura, seja pessoalmente ou pelas redes sociais, criando canal direto, sem qualquer intermediação. O volume de trabalho aumenta muito, é preciso planejamento e método, cuidado com a necessidade de manutenção da parcialidade (quando de um possível processo judicial a ser formado ou já existente), porém o grau de satisfação das pessoas também cresce proporcionalmente, como se vê diariamente inclusive nas postagens que procuro divulgar em minhas redes sociais, sempre que possível.

Em relação ao acesso à justiça, há uma incontável e absurda quantidade de direitos violados que não chegam até nós, o que passa a ser perceptível quando se diminui a burocratização, e retiram-se as barreiras e entraves, especialmente para pessoas simples, com menor nível de educação e conhecimento. E quando as portas se abrem estas pessoas entram. E não param nunca mais de entrar. Quase todas elas desesperançosas, passando por grande sofrimento. Para lidar com essa demanda inclusive nosso fórum está cheio (literalmente) de profissionais (e estudantes) de Psicologia. Costumo dizer sem medo de errar que temos o prédio de justiça no Brasil que mais possui Psicólogas e Psicólogos.

E assim todos os dias em nosso fórum (e nas redes sociais também) as pessoas chegam para pedir algo relacionado à justiça de uma forma nada usual:

-“mandaram eu vir aqui!”

-“comentaram que o doutor daria um jeito de resolver meu problema!”

– “já tentei de tudo e fui em tantos lugares antes que já estou sem esperança!”

-“não sei mais o que fazer!”

-“socorro juiz!”

Meses atrás passou pela porta uma senhora já idosa, avó, chamada Jacira, com seu neto, 20 dias de vida, no colo. Era um dia frio, a criança estava com pouca roupa, com fome. “Onde está a mãe?” perguntei. Ela rapidamente respondeu, com acentuado sotaque mais interiorano: “Na rua usando crack. E o pior doutor, o pai desse menino aqui está colocando ela na prostituição em troca de dinheiro. Peço que o juiz ajude a tirar minha filha da rua e das drogas, afaste ela dessas pessoas que estão lhe fazendo mal, e consiga um tratamento para ela, e vou ficar com o neto enquanto isso”.

Enquanto Jacira era acolhida pelo setor de Psicologia acionamos parceiros (felizmente temos especiais colaboradores) para conseguir leite, fraldas e roupas e cobertas para o bebê. Ao final da entrevista recebi o relatório e de plano identifiquei seu endereço: Porto União, nossa cidade co-irmã, de quem somos separados na maior parte por uma linha de trem, fica no Estado de Santa Catarina. “Não poderemos atender suas demandas judiciais” expliquei. “Mas ainda assim vamos te ajudar e continuar te acompanhando, enquanto as coisas não se resolvem” a tranquilizei.

A Secretaria de Assistência Social havia também sido acionada pela equipe, e já estava no fórum para lhe dar suporte, e inclusive levar Jacira e o neto até sua casa, já que não tinha, a avó, dinheiro para o transporte. A Secretária estava no corredor do fórum e me chamou: “doutor, quando ouvimos o relato não havia ninguém da equipe disponível, nem veículo à disposição. Eu mesmo vou deixá-la em casa com meu carro, no caminho passo na secretaria pegar comida.”

Meia hora depois a Secretária de Assistência me telefonou: “tudo certo doutor Carlos. Já estamos aqui na casa da Jacira. O bebê dormiu. Está tudo bem…” e antes mesmo que pudesse terminar o relato ouvi a avó dizer: “eu preciso falar com o juiz”.

“Excelência, em nome do senhor Jesus Cristo eu quero lhe agradecer pela ajuda que me deu hoje. Eu achei que não iria nem conseguir chegar à casa, o bebê só chorava com fome. Estava desesperada” e prosseguiu “e mais juiz, eu também descobri quando conversava com a secretária que foi o senhor que me ajudou quando estava chovendo aqui dentro. Eu mandei uma mensagem no whats e consegui telha e madeira para fazer o forro e consertar o telhado aqui de casa.” Jacira havia sido contemplada meses antes em uma campanha que organizamos no auge da pandemia, quando conseguimos materiais de construção com parceiros.

E qual não foi minha surpresa algumas semanas depois, quando fui procurado no telefone diretamente por Jacira, que com bastante empolgação relatou sua mudança de residência: “tudo certo doutor, agora to morando em União da Vitória, e meus processos da guarda, da pensão, a internação para minha filha se tratar das drogas. Tudo vai ser cuidado pelo senhor”. Jacira deixou a casa que morava na cidade vizinha e alugou outra residência. “Não é necessário Jacira, não precisa se mudar, há um juiz que certamente irá olhar com muita atenção para seu caso no outro fórum”. Mas já era tarde. A mudança estava feita.

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Ao longo dos próximos meses conseguimos um tratamento para a filha de Jacira, chamada Renata, 19 anos, dois filhos (um deles o bebê do primeiro atendimento), dependente química, usuária de crack. Permaneceu por 3 meses internada em um hospital psiquiátrico. E nesse meio tempo veio outra mudança. Agora a avó Jacira decidira mudar para uma cidade distante, onde inclusive havia conseguido um emprego na roça. “Minha filha precisa ficar longe das pessoas que levaram ela para as drogas, deve ficar longe do pai do filho, que a agredia, colocou ela na prostituição, ameaçava de morte. Bem longe ele vai esquecer da gente e com a alta médica ela vai ter a chance de começar uma vida nova juiz”.

Mesmo após a mudança Jacira não nos deixou. Em verdade ela me escreve semanalmente, quase todos os dias. Conta tudo sobre sua nova vida, sobre a escola dos netos, sobre a recuperação da filha, o trabalho na agricultura, em que acorda cinco horas da manhã, sai de bicicleta com os netos para deixá-los na creche antes de pegar ônibus da empresa. Manda muitas vezes áudios de sete, oito minutos, que somente consigo atualizar ao final do dia. Mas sempre ouço com atenção, e nunca a deixo sem resposta.

Em uma de suas últimas mensagens me chamou: “meritíssimo!” Mesmo semianalfabeta, com pouco conhecimento e utilizando uma linguagem simples e mesmo cheia de erros, ela usa palavras não usuais. “o senhor não vai acreditar que maravilha está tudo aqui. Todo dia vem alguém me visitar, uma hora o Conselho Tutelar, outra a saúde, ou a assistência social. Estão me tratando muito bem aqui, a Renata está bem, tomando remédios que ganhamos de graça, e tudo porque o senhor mandou eles cuidar de mim e de minha família.”

Jacira também me contou que foi procurada pela Defensoria Pública para ajudar em um processo criminal de sua filha. Quando ainda morava em União da Vitória com o companheiro Renata era forçada por ele a praticar crimes de furto, e está agora respondendo processo criminal. “Eles pediram nosso endereço. Eu não quero dar. Não quero que o ex dela saiba onde estamos morando. Aqui estamos seguras. Ele não pode descobrir onde é. Mas o senhor juiz é quem vai me dizer, se eu falo ou não para a Defensoria onde nós estamos morando. Quando o doutor puder por favor me responde.” E completou, como sempre faz: “Eu oro a Deus todo dia pelo senhor e por sua família. Para o senhor não sofrer acidente, para não ser assaltado, para continuar sendo um juiz bom que ajuda as pessoas simples, para que tenha muitas bênçãos em sua vida…”

*os nomes aqui utilizados são fictícios

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR)

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