Crônica: “Meu pai dorme de conchinha e diz que quer se casar comigo”

Era um dia frio de inverno muitos anos atrás, já havia terminado as audiências daquela tarde, e ao voltar para minha sala puxei meu celular para atualizar as mensagens que tinham chegado.

A psicóloga da saúde do Município me chamou no WhatsApp algumas horas antes: “Doutor Carlos, bom dia. Eu atendo uma adolescente aqui na saúde, em que há ideação suicida. O tratamento não está surtindo efeito. Estou muito preocupada com ela. Temo que algo muito ruim possa acontecer. O senhor pode dar uma atenção especial a esse caso?”

Em nosso Cejusc (Centro de Cidadania do fórum) temos uma atenção e cuidado especial com crianças e adolescentes que passam por situação dificuldade de saúde mental. Independentemente da prévia existência de processo judicial. Não há formalidades ou burocracia. A procura pode se dar pessoalmente, por mensagem em redes sociais, pelo próprio menor, pela família, por encaminhamento de conhecido, ou mesmo por relato em que a pessoa prefere não aparecer, ou seja, por denúncia anônima.

Acompanho diretamente estas situações, e sempre oferto a possibilidade de adolescentes falar diretamente comigo, se for o seu desejo.

A mãe e a adolescente, Milena, 14 anos, foram procuradas pela equipe na mesma data da mensagem da Psicóloga, e no dia seguinte estavam no fórum em acolhimento por nossa equipe de Psicologia, para melhor entender toda a situação.

A adolescente na entrevista de acolhimento pouco contou, em que pese tenha deixado clara sua aversão ao pai. Pediu para falar comigo ao final.

Entrou em minha sala de forma tímida. Sentou-se, e antes mesmo de começar a falar já escorreram as lágrimas em seu rosto. Ofereci um copo com água, disse que poderíamos esperar ela se reestabelecer, o tempo que fosse necessário, que não havia pressa.

Enquanto a explicava como funciona o trabalho do juiz da Vara da Infância e Juventude, Milena respirava de forma profunda, como se estivesse preparando para o relato que viria adiante. Enxugou as lágrimas, deixou o copo sobre a mesa, e com cabeça ainda baixa, relatou a seguir: “Juiz, eu não aguento mais. Achei que com a separação do pai e da mãe eu estava livre de tudo isso. Mas agora com as visitas do pai nos finais de semana eu só penso em morrer”.

Expliquei à Milena que ela não precisava contar o que acontecia se não quisesse, que a preocupação principal minha e da equipe era poder dar a ela um alento, para que pudesse seguir seu tratamento e ficar bem.

“Eu prefiro falar juiz. Eu não quero nunca mais ver meu pai. Se tiver que continuar as visitas dele, eu vou acabar tirando minha vida”.

Dificilmente um homem passará ao longo de sua vida por situações similares com as que as mulheres vivenciam em abordagens nas ruas, nas redes sociais, muitas vezes por pessoas que nunca viram antes, conviveram, ou tiveram qualquer tipo de contato. Palavras chulas, olhares lascivos, não raro toques no seu corpo, e condutas e ameaças as mais diversas de que algo pior possa acontecer a qualquer momento em seguida. Não se trata de mero desconforto, decorrente de paquera ou flerte. A cultura de abordagem masculina caracteriza como regra situações de violência contra a mulher.

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Tudo piora quando as condutas inadequadas que configuram violência ocorrem por homens com quem convivem, com quem tem relação de afeto, como, por exemplo, nas relações familiares, praticadas por pais, padrastos ou avôs.

Ali em minha frente, sozinha, mesmo na presença de um homem, porém por sentir segurança, em pedido de socorro passou a relatar sua história pessoal.

Contou que desde pequena idade tinha lembranças de olhares incômodos do pai. Especialmente quando estava com roupa curta no verão, ou de pijama ou camisola quando se preparava para deitar à noite.

Tudo piorou quando chegou a adolescência. O pai elogiava sua “beleza”. Sempre dizia “que se não fosse casado, e tivesse menos idade, casaria comigo”. Pedia para deixar a porta aberta do banheiro enquanto tomava banho, “entrava quando eu estava me enxugando”, sempre com olhar libidinoso. Perguntei se não reclamava para sua mãe. “Eu falava para ela, juiz, mas a mãe dizia que é assim mesmo, que pai tem que ajudar a cuidar dos filhos. A mãe sempre dizia que pai é pai, é diferente. Ele só quer ajudar e ficar próximo de você” respondia.

A mãe trabalhava alguns dias da semana em plantão pela noite, quando o pai vinha até seu quarto, juntava a outra cama que lá havia com a sua, e pedia para dormir abraçado, “de conchinha”.

– “Juiz, eu pedia para ele ir dormir no quarto do meu irmão, que é pequeno, mas ele dizia que como eu era menina tinha que cuidar de mim”.

Milena ainda contou: “o pai sempre dava tapa em minha bunda”, e quando estava na sala queria que ela sentasse em seu colo, situações que a deixavam muito constrangida.

Em que pese a mãe não prestasse muita atenção às suas reclamações a adolescente sentia alguma segurança com  a sua presença, contudo agora com a separação, e a ida para a nova casa do pai nos finais de semana de visitas, Milena entrou em desespero e grave situação de abalo emocional e medo.

Naquela mesma tarde do atendimento no fórum foi proferida decisão judicial suspendendo o direito à visitação do pai à filha, e Milena a partir daquela data nunca mais o encontrou.

O desrespeito e a violência que a mulher passa todos os dias devem ser avaliados por quem exerce a função pública de forma empática e especialmente com alteridade. Homens que atendem mulheres nos sistemas públicos de polícia, justiça, saúde e assistência social devem refletir e avaliar com cautela e atenção os relatos que são recebidos.

Independente das questões culturais de cada comunidade e família, a percepção da violência deve sempre ser analisada pelo contexto do “sentir” da mulher. Não raro a mulher inclusive passa por um processo de autoconhecimento e empoderamento que leva muitos anos para compreensão de que a situação de violência foi por ela vivenciada. Nesse caminhar a saúde mental inevitavelmente resta bastante prejudicada.

Até a desistência das visitas o pai de Milena insistiu judicialmente ainda por muitos anos quanto ao seu “direito de conviver com a filha”, o que felizmente nunca mais ocorreu. Se viesse a acontecer não tenho dúvida de que o temor lá atrás verificado pela psicóloga do município poderia inevitavelmente ter se consumado.

Mesmo após o encerramento do processo, Milena continua a me procurar e conversar comigo via redes sociais. Mudou-se com a mãe e irmão de cidade, e lá já foi atendida por inúmeros profissionais. As situações por ela vivenciadas causaram estresse pós-traumático que ainda a tornam paciente sensível, com a necessidade de cuidado e atenção psicológico e psiquiátrico contínuos.

Dificuldade escolar e de convivência social, diversos episódios de automutilação, apatia e depressão profunda ainda a assolam. Ainda assim tenho esperança e confiança de que o acompanhamento de bons profissionais poderá trazer algum dia a possibilidade de uma vida minimamente saudável psicologicamente a ela.

Não obstante, talvez as lembranças do passado de desrespeito, medo e terror que vivenciou, possam a acompanhar durante toda a sua vida.

Não consigo mensurar a quantidade de casos de violências contra mulheres e meninas que atendi em duas décadas de exercício da magistratura. Atendi dezenas, se não centenas de casos ao longo desse período. Fica o desejo de que todos os servidores públicos que atendem a “violência contra a mulher” sejam cobrados a buscar sempre a permanente capacitação, para melhor cuidá-las.

E, especialmente também que todo homem continuamente reflita sobre suas condutas cotidianas com as mulheres (todas) que abordem ou convivam.*o nome aqui utilizado é fictício.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR).

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