Crônica: ” O Fórum está cercado”

A mensagem de espanto me foi passada pelo escrivão eleitoral, que se aproximou da janela que dava para a frente do fórum, e rapidamente olhou pela pequena fresta da cortina fechada. Em seguida completou: “Estão muito próximos Doutor Carlos, já ultrapassaram a faixa e os cones que a polícia militar havia colocado”.

Ano passado escrevi neste mesmo espaço sobre a primeira eleição que presidi como juiz eleitoral, quase duas décadas atrás, em uma comarca distante de União da Vitória. Contei sobre as centenas de prisões pela prática da chamada “boca de urna” naquela eleição municipal para prefeitos e vereadores. O ginásio da cidade ficou lotado já no início da manhã, e durante todo o dia muito trabalho da polícia civil para formalizar toda a documentação necessária em face dos crimes praticados. Em razão da pena prevista na lei criminal, todavia, não era caso de prisão em flagrante, e assim à medida em que terminavam de ser “fichados”, aos poucos eram liberados.

Na época já eram utilizadas nas eleições as urnas eletrônicas. A apuração ocorria em formato parecido com o atual, em um computador no prédio do fórum. Os dados das urnas eram enviados dos locais de votação em rápido transporte, e chegando ao local os “disquetes” eram inseridos nesse computador, em que os dados eram consolidados e remetidos para o Tribunal Regional Eleitoral. A diferença para o sistema atual que naquele tempo não havia ainda possibilidade de acompanhamento simultâneo via internet.

Deste modo, conhecer mais rapidamente o resultado da eleição era possível apenas a quem acompanhava pessoalmente as informações as quais eram divulgadas no próprio fórum, ou na sede do TRE na capital.

Assim, além dos candidatos e representantes dos partidos, uma grande “massa” de curiosos se dirigia ao final da votação às proximidades do fórum para receber em  primeira mão a informação sobre as “parciais” da votação, e mais adiante o resultado de quem eram os eleitos. Naquela eleição a eles se juntaram muitos dos presos, que saíram diretamente do ginásio para os arredores do fórum.

Como havia dois grupos políticos disputando as eleições um deles se reuniu mais à frente do prédio, o outro na rua lateral. Com o passar do tempo, contudo, acabaram por se misturar, e mais que isso; após a reunião das pessoas nas ruas de acesso ao fórum, com a chegada de mais público acessaram as calçadas do entorno, e logo já estavam sobre o grande gramado do jardim na sua frente. O fórum ficou “ilhado” no meio da multidão.

Enquanto a apuração avançava passaram as pessoas do cantar dos “jingles” dos candidatos para os gritos de guerra, e mais adiante com a apreensão da apuração voto a voto, nem mesmo a barreira policial que havia sido preparada para garantir a segurança da contagem estava sendo respeitada. O reforço policial apenas chegou quando o escuro da noite já havia avançado, e inevitavelmente com acirramento dos ânimos e mesmo o risco de “invasão”  do prédio, outras prisões acabaram ocorrendo.

Com a dificuldade de acesso que a aglomeração causava as últimas urnas que chegavam quase não conseguiram mais acessar o fórum, e precisaram ser escoltadas pela polícia militar. Um dos motoristas da prefeitura que auxiliava a justiça eleitoral, chegando de distante zona rural de comunidade do interior do município, por muito pouco não foi agredido fisicamente. “Ele é do candidato fulano” gritou alguém no meio do povo, e automaticamente logo a seguir partiu a multidão para cima do motorista. Não fosse a pronta atuação dos policiais até mesmo os dados da urna seriam perdidos.

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Quando da divulgação do resultado final mais uma grande confusão precisou ser apartada pela polícia militar. Enquanto um grande grupo comemorava o resultado, soltando muitos fogos de artifício, cantando alegremente, a outra metade ali presente, insatisfeita com o resultado, furiosa tentou passar pelos policiais para invadir o prédio do fórum.

Somente tarde da noite conseguimos eu, o promotor eleitoral e os servidores voltar em segurança para casa.

As centenas de prisões ocorridas naquelas eleições se transformaram em processos criminais. E meses depois iniciaram as audiências destes processos. Realizávamos uma vez por semana uma pauta de audiências apenas destes crimes durante todo o dia, e nelas aos réus era ofertada a possibilidade de transação penal, uma espécie de acordo firmado entre os réus e promotoria de justiça, em que os acusados assumiam o compromisso de pagar uma multa em dinheiro para arquivamento dos processos.

Quase todos os envolvidos eram pessoas humildes, e mesmo com o parcelamento das multas o dinheiro infalivelmente faria muita falta. O “clima” nestas audiências era de tristeza, desalento e desolação, e especialmente de grande arrependimento. Não tenho dúvida de que o efeito pedagógico do processamento certamente foi atingido com as medidas tomadas.

“Nunca mais vou me envolver com política doutor juiz, aprendi a lição”, relatou-me um senhor aposentado em uma das audiências. O Promotor de Justiça que me acompanhava ressaltou que o envolvimento dele não havia sido com “a política”, mas com a prática de conduta criminosa que inclusive em nada contribui para o processo democrático, reforçando o processo de autorreflexão que o acusado havia iniciado.

O mundo dá multas voltas, e a história muitas vezes se repete quando se trata de golpear a democracia e a vontade popular. Fica o desejo de que nossa ainda frágil democracia possa por meio das instituições e das pessoas que a compõem a assunção de responsabilidade para sua efetiva consolidação. E que inclusive aqueles que se utilizam dos poderes constituídos para desestabilizá-la sejam processados e punidos com o rigor da lei.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR).

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