Crônica: “O fórum paternalista”

Nosso fórum atende as pessoas que nos procuram sem qualquer formalidade. Não é necessário ter processo judicial em andamento, não é preciso morar nas cidades a nós vinculadas, o atendimento pode ser presencial ou por diversas redes sociais amplamente divulgadas, e há possibilidade também inclusive de procurar o juiz diretamente por seus contatos, que ninguém ficará sem resposta. A esse respeito, em uma reunião intersetorial da rede de atendimento da mulher vítima de violência, realizada em data recente recebemos uma crítica pública de outro integrante da justiça, de que deveríamos parar de ser “paternalistas”, de “querer abraçar todo mundo”.

Crônica: "O fórum paternalista"

Ao receber o relato da equipe que lá me representou refleti (e sempre o faço quando recebemos as chamadas críticas negativas): “quem dera pudéssemos abraçar todo mundo! Se tivéssemos estrutura humana e conseguíssemos abraçar todos aliás, certamente o faríamos!”. Quanto ao paternalismo referente ao nosso formato de atendimento, não me parece haver qualquer razão para mudar nossa linha de trabalho. Explico.

Paternalismo segundo os dicionários pode significar “próprio de pai, paterno, que é de natureza semelhante a de um pai”. Em sentido figurado pode significar “aquele que demonstra compreensão ou benevolência; complacente, indulgente”. Complacente por sua vez pode denotar o “desejoso de agradar, de demonstrar cortesia, de servir.” Ainda aquele “que demonstra gentileza, amabilidade ou benevolência”. Já indulgente “aquele que tem disposição para desculpar ou perdoar; clemente, tolerante”, ou “aquele que se mostra favoravelmente disposto na apreciação de atos de outrem”. Em suma, sob qualquer ótica e aspecto que se tenha configurado a crítica, concluo não existir motivo para alterações de rumos. Continuaremos a ser paternalistas, seja no sentido literal, ou no modo figurado do termo. E vale sempre destacar também que o trabalho aqui organizado encontra consonância com o novo formato de Poder Judiciário deliberado pelo Conselho Nacional de Justiça.

Ketlin chegou até nós por meio de sua professora da faculdade de Pedagogia. Segundo o relato estava na metade do curso, era frequente e ótima aluna, mas passava por um período difícil quanto à saúde mental. “Doutor Carlos, eu temo pelo pior. O discurso dela é de total desalento com problemas familiares. Fala em suicídio e creio que há sim concreto risco de algo nesse sentido acontecer.” Pedi que me passasse o contato da universitária e no mesmo dia agendamos horário e por meio do Setor de Psicologia iniciou-se o atendimento.

Ao final do acolhimento psicológico também conversei com Ketlin, que detalhou algumas de suas dificuldades cotidianas. A mãe desempregada possui quadro médico de esquizofrenia, e sofre violência doméstica contínua do pai, inclusive na presença dela Ketlin e do irmão menor de idade. Informou que a mãe por temor da piora do quadro do marido e medo das ameaças não pretendia procurar a polícia para registrar ocorrência ou pedir medida protetiva. O pai, alcoolista, trabalha na coleta de material para reciclagem. A par da pequena renda obtida pelo pai a única outra fonte de recurso, o recebimento na época do benefício assistencial bolsa família. Informou ainda o diagnóstico do irmão de 14 anos de deficiência intelectual moderada. “Falta tudo lá em casa. Respeito e compreensão por parte de meu pai. Mas faltam também as coisas mais básicas Doutor Carlos, como comida e itens de higiene. Estou com dificuldade de controlar meus pensamentos, que somente me trazem a vontade de tirar a própria vida.”

Montamos um plano de ação para auxiliar a família. Ketlin foi encaminhada para atendimento por uma Psicóloga parceira para a psicoterapia. Para o pai ofertamos atendimento e acompanhamento de saúde para a dependência. Atualizamos os laudos médicos da mãe e do irmão para aperfeiçoar o tratamento médico. O currículo de Ketlin foi encaminhado para parceiros, e logo conseguimos um estágio remunerado para ela. Para a mãe também buscamos viabilizar emprego, o que não foi possível em razão de seu estado de saúde. Providenciamos cesta básica e de produtos de higiene pessoal e para limpeza da casa.

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Passadas algumas semanas, com a não aderência do pai aos tratamentos ofertados, a situação de desrespeito e violência em casa continuou bastante crítica. Ketlin ao receber o primeiro salário do estágio me comunicou que acabara de alugar uma casa para seguir com seu irmão e sua mãe para outro local: “é um bairro bastante afastado juiz, mas somente assim  vou conseguir pagar o aluguel. Só há um problema, não temos nenhum móvel para levar, precisamos de tudo, utensílios domésticos, cama, mesa, sofá, colchão, geladeira, fogão…”

Realizamos uma campanha e conseguimos os móveis e eletrodomésticos mais básicos. Como não havia nada na cozinha separei parte do meu orçamento daquele mês, passei em seguida em uma loja de departamentos, escolhi e paguei uma “cozinha completa”, que foi entregue e instalada na casa no final daquele mesmo dia.

No novo lar tiveram um pequeno período de paz e tranquilidade longe do pai/marido violento, contudo os problemas continuaram. No bairro atual uma organização criminosa era bastante atuante na traficância de drogas, e justamente na casa vizinha morava um faccionado ligado ao chamado “tribunal do crime”. Temido por todos na localidade, o vizinho se utilizava de sua “função de destaque” na associação criminosa para praticar toda espécie de ameaças. Ketlin relatou que por mais de uma vez ao chegar da faculdade o vizinho estava “jantando” a comida que sua mãe havia preparado. “Ainda utiliza o banheiro antes de sair Doutor Carlos, e não é possível falarmos nada a respeito, temos muito medo de denunciar para a polícia”.

Quando a mãe teve piora no quadro de esquizofrenia, auxiliamos na sua internação médica, e com o afastamento temporário da mãe voltou Ketlin com seu irmão à casa do pai para diminuir as despesas. Ao menos já estava nessa época mais estabilizada mentalmente, com maior resiliência para lidar com a situação. Continuamos auxiliando a família com cestas básicas (as que recebem do CRAS não dura mais de 15 dias no mês), e todo o tipo de orientação e encaminhamentos.

Ketlin pede para ouvir minha opinião para todas as decisões importantes que toma em sua vida. Formou-se em Pedagogia e logo a seguir conseguiu uma bolsa de mestrado. “Vale a pena aceitar a bolsa doutor? Eu vi que há limitações para acumular com algumas formas de emprego? O que eu faço?” me questionou via WhatsApp.

Como Ketlin estava com muitas dívidas no comércio, contas de água e energia elétrica atrasadas, acumuladas na época em que estava desempregada, a ela foi nomeado advogado dativo (sem qualquer custo) para que pudesse renegociar os débitos. E qual não foi minha surpresa quando me procurou para consultar sobre o parcelamento que havia sido acertado pelo advogado: “Está difícil pagar a ele doutor Carlos. Ele comentou que havia feito um desconto para nós. Mas confesso que o valor ficou muito alto, e isso não ajuda em nada a pagar as dívidas que eu estou renegociando”.

Em razão da conduta imprópria do profissional, que deveria trabalhar no caso sem qualquer contraprestação financeira, já que receberia os honorários pelo trabalho do Estado, sugeri-lhe que suspendesse imediatamente o pagamento ao advogado, nomeamos outro profissional, e encaminhamos o caso para a polícia e para investigação administrativa junto à OAB.

Atualmente, mais empoderada e com o reequilíbrio que obteve com a psicoterapia, Ketlin consegue lidar melhor com as doenças da mãe e do irmão, e com as condutas do pai. Junto com a mãe procuraram a polícia e atualmente o pai tem mantido comportamento mais razoável no cotidiano. Logo Ketlin conseguirá com sua formação obter um salário digno e certamente ajudará toda a família de forma mais substancial também materialmente.

Já em data mais recente fui procurado por uma mestranda em Educação e Pedagogia, que relatou sobre a colega mais nova (de idade) de sua classe: “ela certamente possui “altas habilidades”. Seria importante conseguir uma avaliação psicopedagógica para ela, que nunca fez. O potencial dela é claramente muito destacado”. E assim corremos atrás de uma profissional que já deu seu ok para fazer a avaliação sem qualquer custo. Não temos ainda o resultado, mas a avaliação já está marcada.

O caso de Ketlin mostra que nosso trabalho “paternalista” é necessário e de fundamental importância àqueles que nos procuram com situação de extrema vulnerabilidade, de forma que possam com uma referência “paterna” institucional potencializar suas qualidades e (altas) habilidades individuais com segurança e um pouco de esperança.

*o nome aqui utilizado é fictício.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR).

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