Crônica: “Posso engraxar seu sapato, juiz?”

Durante um ano trabalhei como juiz substituto na cidade de Bandeirantes, norte do Paraná. O ano era 2003. Já na primeira semana de trabalho vi João circulando pelo corredor do Fórum com uma caixa de madeira presa em uma mochila em suas costas. E não demorou muito para ele bater na porta de minha sala em uma quente tarde de janeiro: “você é juiz mesmo?” Perguntou, emendando logo a seguir: “posso engraxar seus sapatos?”

Crônica: "Posso engraxar seus sapatos, juiz?"

Foto: reprodução

Respondi que estava concentrado estudando um processo, que ele voltasse outro dia. “Não vou cobrar nada na primeira vez juiz, assim pode conhecer meu serviço”. Iria perguntar sua idade, quando rapidamente insistiu: “eu passo graxa no sapato do Dr. Mario dia sim, dia não, do Dr. Evaldo que foi embora era todo dia”, referindo-se aos demais juízes. Pode entrar respondi, mas “peço que fique em silêncio” acrescentei, enquanto ele já se preparava com a caixa de madeira que era o suporte para colocar os sapatos.

Eu nunca havia engraxado os sapatos, aliás nem sequer usava sapatos até assumir o cargo de juiz. Tinha apenas uma vaga lembrança dos engraxates que ficavam no calçadão da Rua XV, em Curitiba. A figura do engraxate foi sumindo de cena ao longo dos anos com a substituição dos calçados por tênis, além de material sintético e mais descartável.

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Nos 15 minutos em que João permaneceu na sala não parou de falar um minuto sequer, desobedecendo meu pedido. Contou um pouco de sua história: tinha 14 anos, criado apenas pela mãe, já que o pai foi expulso de casa pelos irmãos mais velhos porque “bebia e batia nela”. Estava trabalhando para ajudar a família, pois os irmãos casaram e ficaram apenas ele e uma irmã mais nova em casa. A mãe, dona de casa, não tinha renda e pagava as contas com “ajuda da prefeitura” e o salário do atual companheiro. Relatou que ganhou a caixa e o material para limpar os sapatos do primo que foi embora para a capital buscar trabalho.

Acabei aceitando o “trabalho” dele duas ou três vezes na semana, com a condição de que apresentasse o boletim de notas e frequência escolar todo mês.

Quando as aulas iniciaram, pedi a João que viesse em casa, para não atrapalhar o horário da escola. E ao final do mês de março solicitei que trouxesse a declaração da presença escolar, como havíamos combinado. João era muito falante, tinha assunto para tudo, mudava o tema com muita rapidez, e quando estava terminando sempre repetia (enquanto já saía apressadamente): “Juiz, vou pedir de novo para a diretora, na próxima vez eu trago o documento”.

Com o passar das semanas resolvi consultar a situação escolar de João, e descobri que ele não estava nem mesmo matriculado, aliás nem sequer havia estudado no ano anterior. Ao chamar João para conversar, ele confessou que trabalhava meio período informal em uma oficina, e no outro fazia o trabalho de engraxate. Disse que não queria trabalhar no corte de cana, que muitos amigos se machucaram com o uso do facão, que seus irmãos sofriam muito embaixo do sol, sem proteção, que um deles ficou muito doente, e que pretendia seguir um caminho diferente para ajudar sua mãe. João também contou que apanhava de seu padrasto, atual companheiro de sua mãe, que o obrigava a trabalhar para ajudar em casa. João também não via sentido em voltar para a escola, onde sofria bullying e tinha vários apelidos em razão de sua pele negra.

Fiz um acordo com João para ele voltar a estudar, arrecadei móveis com a equipe do fórum para sua casa, conseguimos sua transferência para outra escola, conversei com a diretora e pedagoga sobre o bullying. Até minha saída de Bandeirantes por vários meses eu pagava o valor da limpeza de meus sapatos, mesmo sem ele fazer o serviço. Às vezes, ele insistia e passava em casa no sábado, quando “dava uma geral” nos dois sapatos que eu tinha à época. Depois que fui embora soube pelo Conselho Tutelar que João havia começado a trabalhar no corte de cana.

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João foi o primeiro caso que atendi de evasão escolar. Mesmo sem processo judicial no fórum, sem encaminhamento da rede de proteção, busquei possibilitar a volta e permanência dele na escola.

Alguns anos depois, em 2008, já em União da Vitória, a partir de uma iniciativa de atendimento coletivo, com apoio da Secretaria Estadual de Educação via Núcleo Regional e Promotoria de Justiça, surgiu o que seria depois o chamado “Projeto de Combate à Evasão Escolar”. Mas isso é conversa para outro texto.

Não consegui manter o vínculo escolar de João. Assim como nem sempre conseguimos retornar ou manter em sala de aula os cerca de 800 casos de evasão que atendemos todos os anos pelo projeto. Porém, entendo que como agente de serviço público é preciso continuar sempre buscando insistentemente algo diferente daquilo que já é feito para que toda criança e adolescente tenha a oportunidade de seguir sua vida escolar adiante.

*Os nomes aqui utilizados são fictícios.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR)

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