Crônica: “Quem trabalha de graça?”

Havia chegado à cidade há poucas semanas, e quando se é novo no Fórum nem sempre se conhece todos que trabalham no local imediatamente. Há aqueles que estão em férias, trabalham em outras varas judiciais, sendo que muitos fóruns recebiam há pouco tempo também equipes do Ministério Público, Justiça Eleitoral, e até mesmo cartórios extrajudiciais.

quem trabalha de graça?

Judges gavel on book and wooden table. Law and justice concept background.

Aquele senhor de mais idade, baixa estatura, franzino, muito bem arrumado, sempre com camisa de manga longa, por dentro da calça, sapato, estava por lá todos os dias, de manhã e pela tarde, e quando por ele passava fazia questão de me cumprimentar de forma muito bem-humorada, e continuamente emendava: “estou à disposição Doutor!” Estava habitualmente com algum papel ou processos nas mãos, caminhando de um lado a outro. Os processos na época ainda eram “físicos”, não havia processo eletrônico.

Nos primeiros dias de trabalho ficava sozinho em minha sala, ainda não havia realizado a seleção para a vaga (única) de estágio, nem possuía assessoria de bacharéis, como ocorre atualmente.

Com o acúmulo grande de processos e audiências, precisando de auxílio, e como ele se mostrava bastante solícito, enquanto assinava uma grande pilha de documentos em companhia do escrivão criminal Mario perguntei:

“Aquele senhor que está sempre pelos corredores, ele é vinculado a qual setor do Fórum?”, respondendo de pronto o escrivão: “o José não pertence a nenhum setor Doutor, ele atende a todos”.

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E completou: “ele não tem vínculo com o Poder Judiciário, na verdade é aposentado da Prefeitura há muitos anos, e agora colabora com o Fórum”.

O escrivão Mario contou que José começou a aparecer no Fórum na “hora do café”, puxava tímido uma conversa, depois sentava nas cadeiras do corredor e permanecia por horas observando.

Na época pediram ao Policial Militar, que fazia a segurança do local, para abordá-lo, quando ele confessou que gostava muito do trabalho da justiça, destacou já havia sido testemunha em duas oportunidades (o que sempre repetia demonstrando contentamento e orgulho), além de que gostaria de conhecer um pouco melhor o trabalho. Quando, em razão das chuvas, parte do arquivo do fórum precisou ser deslocado para a sala do Tribunal do Júri, ele se ofereceu para ajudar a carregar as caixas de processos, e assim começou seu trabalho no local.

Segundo Mario já havia perdido a conta de quantos anos José fazia parte da equipe. Apesar da idade, já bastante avançada, era muito ágil, nunca faltava, nem reclamava de nada, sempre chegando pontualmente no horário de abertura do fórum, disposto a ajudar quem lhe procurava. José acompanhava a movimentação dos corredores, orientava as pessoas para onde deveriam se deslocar, tirava cópia de documentos, levava ofícios para a prefeitura, conselho tutelar, fazia um pouco de tudo.

Chamei José em seguida e me apresentei, ele logo interrompeu: “pode pular essa parte doutor, já sei tudo sobre o senhor, pode me passar a tarefa” disse, completando: “me perdoe a intromissão, mas eu vi que o senhor ainda não mandou o carro para lavar, se precisar eu agendo, e se estiver faltando algo em casa só me avisar também. Essa casa que o Doutor alugou não tinha nenhum móvel né?” E assim conheci o primeiro voluntário com quem trabalhei.

Alguns anos adiante, quando eu já trabalhava em União da Vitória, conheci um colega juiz que havia acabado de chegar na cidade, o qual rapidamente formou sua equipe, contando inclusive com vários voluntários. “Como conseguiu em tão pouco tempo, novo por aqui, encontrar pessoas que vão trabalhar para ele de graça?” pensei.

Anos depois, quando iniciamos o desenvolvimento de nossos projetos de cidadania, primeiro o “Combate à Evasão Escolar”, mais adiante o “Amigos do Povo”, passei a trabalhar com uma equipe muito grande de voluntários. Todos muito dispostos, por diversas vezes trabalhando em finais de semana, madrugando para começar cedo sem nunca reclamar, sem hora para encerrar, com deslocamentos para comunidades distantes, não raro sem tempo nem mesmo para se alimentar.

E somente então passei a compreender os valores que envolvem a função do voluntário. O voluntariado é acima de tudo o trabalho por uma causa. Há quem já tenha sua profissão (e sua remuneração), e também aqueles que têm o tempo livre por estarem procurando emprego. Além da aquisição de experiência, a vivência de situações outras que ainda não foram oportunizadas pela vida, e essencialmente também a busca do bem-estar pessoal, e do bem comum.

Aprendi ainda que o voluntário exige responsabilidades, tarefas delimitadas, organização, e quando seu “vínculo” é cotidiano deve participar ativamente de tudo, ser inserido de forma completa e isonômica na equipe, na gestão, nos deveres, direitos e obrigações. Por outro lado necessário, também, adaptar e flexibilizar as condições de trabalho em troca da atividade. O voluntário precisa ser mimado (como os todos os demais), no bom sentido da expressão.

Quando possível conforme a realidade de cada um a remuneração não é o fator mais importante. A parceria e o retorno para o voluntário se configuram nas oportunidades de aprendizado, na satisfação pessoal e profissional. E não raro verifico o reconhecimento, a empregabilidade e o retorno financeiro vir mais adiante de forma bastante satisfatória.

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Não há trabalho de graça, há sim graça, e uma troca riquíssima de experiências, inclusive para quem conta com tantos voluntários na sua equipe. Atualmente, contamos com 20 voluntários fixos em nossa equipe, e tantos outros que contribuem em diversas atividades e projetos do fórum.

Certa vez ao perguntar para o voluntário José o que pensava sobre seu trabalho, rapidamente respondeu: “Doutor, eu sou muito feliz por fazer parte dessa equipe, eu adoro o que faço, não consigo imaginar o que seria de mim sem o trabalho aqui no fórum”.

*Os nomes aqui utilizados são fictícios.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR)

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