Crônica: “Somente penso em tirar minha vida. Me ajuda por favor!”

Fui procurado primeiro pela Diretora da antiga escola em que Emanueli estudava, solicitando auxílio: “Estamos todos preocupados juiz. Ela já se cortou várias vezes, depois que transferiu para o outro colégio, fala toda hora em tirar a própria vida. Aqui conseguíamos ficar mais próximos dela. Fazíamos a inclusão dela em atividades de contraturno. Agora está tudo mais difícil porque ela está distante”, relatou-me pelo whatsapp. Pedi que me enviasse o contato de Emanueli, 16 anos. A diretora informou que conseguiria até o dia seguinte.

Crônica: "Somente penso em tirar minha vida. Me ajuda por favor!"

Na manhã seguinte, a diretora me repassou o contato e atualizou a situação de Emanueli: “ela teve uma forte crise de ansiedade ontem, desentendeu-se com a mãe, fez a mochila e pegou carona na estrada. Está em Caçador com uma tia. A mãe está preocupada porque essa tia não é muito próxima da família.”

Chamei Emanueli no whatsapp com uma mensagem de áudio. Primeiro me apresentei, falei de meu trabalho com alunas e alunos da rede escolar. Expliquei a ela que poderíamos ajudá-la com as questões referente à saúde mental, e ofertei espaço para que ela trouxesse suas demandas pessoais, se assim quisesse.

Poucos minutos após Emanueli respondeu: “Eu conheço o juiz, que já fez uma palestra em minha escola” e logo a seguir emendou: “eu estou bem agora. Aqui vão cuidar de mim. Vou procurar trabalho. Ninguém me respeita na escola em que eu estava estudando. Na minha casa estava tudo muito difícil. Vou ficar por aqui juiz.”

Emanueli explicou que desde muito pequena tinha crises de ansiedade, que estavam piorando com o tempo. Procurou ajuda com a pedagoga da escola: “foi uma boa conversa, mas logo depois tudo piorou novamente, e ninguém mais me deu atenção”.

Com um atendimento direto e a promessa de sigilo e respeito às individualidades, normalmente adolescentes criam um rápido vínculo comigo, especialmente quando já ocorrida uma palestra ou atividade presencial minha no ambiente escolar antes. Emanueli na primeira abordagem, contudo, não trouxe muitas informações sobre si, em que pese continuou conversando comigo sempre que a chamava.

Naquele mesmo dia o Conselho Tutelar da cidade catarinense a visitou a meu pedido, ofertou ajuda psicológica, e me garantiu que estava ela em um ambiente seguro. Ainda assim pedi a Emanueli que refletisse sobre a importância de seu retorno para casa, para que pudéssemos seguir com seu acolhimento e atendimento. Respondeu-me que não era sua intenção mais voltar, mas pensaria a respeito.

Poucos dias após, em um final de tarde, a adolescente me chamou no whats e pediu ajuda para retornar. O Conselho Tutelar de seu município foi buscá-la e a trouxe de volta para casa. Emanueli, mais segura e confiante, passou a me relatar sua história.

Seu pai, alcoolista crônico e violento, havia saído de casa alguns anos atrás. Uma medida protetiva concedida judicialmente pela Vara Criminal havia proibido qualquer contato com a família. Morava ela em uma casa de madeira, alugada, com a mãe, analfabeta e desempregada, e dois irmãos. O mais novo, menor de idade, com deficiência, e um irmão adulto, dependente químico. A renda da família era composta pelo benefício assistencial (BPC) do irmão e o bolsa família. O pagamento deste último havia sido cortado em razão da evasão escolar de Emanueli.

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A adolescente contou que não conseguia mais frequentar a sala de aula, pois tinha crises de choro todos os dias, e sofria bullying em razão disso. Não se sentia protegida e acolhida no ambiente escolar. Pediu para fazer as tarefas e provas em casa, mas não foi atendida, e assim parou de estudar. Em casa também não se sentia segura, pois o irmão vivia “chapado” por fumar pedra (crack). Emanueli narrou que o irmão olhava para seu corpo de forma incômoda quando estava “alterado”, e que assim permanecia boa parte do dia trancada em seu quarto com medo.

Expliquei para ela que poderíamos preparar uma decisão judicial protetiva para que seu irmão fosse afastado de casa, ou mesmo fizesse avaliação médica de forma compulsória para verificarmos sobre sua dependência e eventuais tratamentos. Emanueli pediu para esperar: “melhor não juiz, tenho muito medo de como ele vai reagir quando chegar a decisão judicial. Ele vai desconfiar que foi a meu pedido, e a situação aqui vai só piorar. Vou tentar conversar com minha mãe primeiro para ver como podemos fazer (sic)”.

Providenciei o encaminhamento da adolescente para acompanhamento psicológico na saúde do Município, e pedi para que buscasse tentativa de retorno para a escola. A equipe de nosso fórum fez contato com a direção da escola para que preparassem o plano de retorno e readaptação.

A volta para a escola, todavia, não foi fácil. Emanueli não conseguia frequentar o ônibus escolar, o que a deixava muito ansiosa. Para fazer o trajeto a pé somente era possível se deslocar quando não chovia, pois o longo trajeto em estrada de chão deixava o caminho intransitável.

Após iniciado o tratamento na Psicologia do Município, e com muito esforço pessoal, Emanueli conseguiu frequentar alguns dias de aula algumas semanas depois. Quando amanhecia chovendo me mandava mensagem já cedo justificando que iria faltar: “Ainda não consigo entrar no ônibus, mas vou me esforçar para isso doutor Carlos”.

Semanas adiante, em uma segunda-feira cedo, recebi mensagem de áudio de Emanueli com voz embargada pedindo socorro: “estou no banheiro da escola. Tive uma  crise e comecei a tremer e chorar. Todos na sala começaram a rir. A professora viu que eu era o motivo, falou que não vai admitir indisciplina na sala e mandou eu sair. Estou nervosa, somente penso em tirar minha vida. Me ajuda por favor!” Orientei que procurasse a pedagoga, e nossa equipe do fórum fez contato com a direção da escola para proceder com seu acolhimento.

Minutos após novamente me chamou: “doutor Carlos, levei uma bronca do diretor e da pedagoga por mandar mensagem ao juiz. Falaram que eu deveria ter procurado eles e não você. Gritaram comigo. Estou aqui na porta da escola, mas não vou conseguir ir sozinha até em casa, estou tremendo, não consigo caminhar. Alguém pode vir me buscar?”

Acionei mais uma vez nossa equipe, para que contatasse o Conselho Tutelar, e logo veio a resposta: “Doutor Carlos, o conselho falou que estão sem carro, que estão fazendo um atendimento no interior do município, e vai demorar para retornar. Não vão poder atender seu pedido. Ainda reclamaram da adolescente doutor. Falaram que ela faz cena para aparecer”. Com a resposta eu mesmo fiz contato com o conselho, e pedi para que providenciassem imediatamente outro carro com uma secretaria do município, e fossem até a escola atender Emanueli. Pedi que em avaliação pudessem identificar se era o caso de encaminhá-la para atendimento médico ou a levassem para casa.

Emanueli levou outra bronca, agora da conselheira que foi até seu colégio: “estou no carro do conselho juiz, reclamaram que estavam atendendo um caso urgente, e que eu devo me tratar para parar de incomodar, e que não era para ter procurado o senhor”. Ao fundo ouvi a voz da conselheira: “desliga esse telefone menina”.

A adolescente foi levada até o pronto-socorro do município, onde permaneceu “na fila” dos atendimentos. Cerca de uma hora depois voltou a me atualizar: “A enfermeira falou que meu caso não era urgente, que eu deveria esperar. A conselheira falou que não poderia ficar comigo. Estou voltando a pé para casa mesmo sem o atendimento. Mas estou um pouco mais calma agora. Obrigado por me ajudar juiz”.

Meses depois Emanueli acabou saindo de casa e foi morar com o namorado, Julio, 19 anos. “Ele trabalha no mato, com erva, ganha um dinheirinho; ele me entende e está me ajudando muito”.

– “Eu sinto falta de minha mãe, mas ela é manipulada e acuada pelo meu irmão, e a situação lá estava muito feia. Ele está com uma dívida alta com o traficante que entrega droga para ele. E lá eu não tinha paz Doutor Carlos, o ‘olhar’ dele para mim era cada vez de mais desrespeito, entrava no banheiro quando eu estava no banho. Eu estava levando uma faca para o banheiro para me proteger se ele tentasse alguma coisa comigo”.

Emanueli, apesar de todas as dificuldades, conseguiu seguir seu tratamento, passou a fazer uso de medicamento para a depressão e ansiedade. Já quanto ao seu retorno para a escola encontrou mais resistência: “A pedagoga  falou que eu não tenho matrícula e não preciso mais ir”.

Pelo fórum fizemos o trabalho de empoderamento para que pudesse lidar com as dificuldades, que aliás nem sequer deveria mais continuar passando. Conseguimos doação de material escolar e uma mochila nova. Atualmente casada, apesar da reprovação escolar no ano em que iniciamos a parceria para ajudá-la, seguiu com os estudos.

Quando de minha última ida a trabalho até sua cidade combinei de passar em sua casa visitá-la. Levamos roupas novas e uma cesta básica. Ao me receber na porta de casa simples, de material, sem pintura, um forte aroma de comida, e Emanueli saiu apressada da cozinha: “Estou terminando de fazer o almoço porque daqui a pouco já saio para a escola”.

Nessa mesma hora seu marido Julio chegou a casa, disse oi com a cabeça baixa e entrou. “Ele é tímido assim mesmo doutor. Ele não tem ciúmes de você. Ele sabe o quanto o juiz é importante em minha vida. Eu conto tudo para ele”.

“Doutor Carlos, eu preciso entrar porque eu deixei o fogão ligado. Me desculpa. Muito obrigado por tudo” disse ao voltar apressada para casa, com largo sorriso no rosto.

*os nomes aqui utilizados são fictícios.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR).

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