Crônica: “Super Cem – Carlos Eduardo Mattioli”

O desenho do super-herói foi deixado em minha mesa antes de minha chegada ao Fórum. Um homem abrindo seu terno e gravata, e por baixo a roupa do personagem parecido com o conhecido “Super-homem”. Do outro lado a assinatura de Juliana, 11 anos. Para que não ficasse qualquer dúvida Juliana criou e escreveu o nome do seu herói: “Super CEM – Carlos Eduardo Mattioli”.

Crônica: "Super Cem - Carlos Eduardo Mattiolli"

O trabalho desgastante, muitas vezes penoso, no atendimento de casos graves e pesados, todos os dias na Vara da Criança e Adolescente, por vezes é também permeado de surpresas, como o agradecimento e reconhecimento espontâneo de crianças.

O super-herói representado na figura do Juiz, ao tempo em que motiva ainda mais em buscar aparato humano, célere, respeitoso e acolhedor, mostra também o tamanho da responsabilidade de cada caso atendido.

E como foram usados meus “superpoderes” no caso de Juliana?

A palestra na escola foi solicitada pelo diretor: “Juiz, estamos nesta semana tratando com nossos alunos questões como o respeito ao próximo e também o bullying no ambiente escolar. Além das atividades pedagógicas queremos uma palestra para encerrar as atividades. Em conversa com os alunos o pedido foi para a vinda do ‘Juiz da Criança’ para conversar com os alunos”.

Era ainda primavera, mas naquela semana o calor já se apresentava desde cedo em União da Vitória (PR). E na manhã escolhida, no horário combinado, fui até o auditório da escola. No quadro a frase escrita com giz colorido: “Haja mais amor, a começar por mim”. Comentei com o diretor que além do bullying, aproveitaria para tratar de outros temas (como corriqueiramente faço), especialmente de violências que afligem crianças e adolescentes.

Faço estas abordagens públicas em ambiente escolar há muitos anos. Ao menos 20 a 30 conversas com alunos durante o ano letivo. Quando a agenda permite consigo encaixar um número maior. Já cheguei a fazer mais de 70 escolas em um único ano.

O tempo de fala e a forma de abordagem levam em consideração as idades dos alunos atendidos. No colégio de Juliana, o público que lotava o auditório estava entre 07 a 15 anos de idade. Esclareci ao diretor que ao final da ‘palestra’, além de abrir espaço para perguntas públicas, também atenderia os alunos que pedissem para conversar reservadamente: “separa uma sala para isso por favor”.

O tempo precisa ser bem calculado, e não marco qualquer compromisso logo após, pois algumas vezes a quantidade de alunos que pedem para falar comigo é tão grande, que permaneço mais algumas horas após a palestra no ambiente escolar.

E na escola “particular” de Juliana não foi diferente. Terminada minha fala uma longa fila se formou. Normalmente os alunos mais afoitos e apressados querem apontar algum caso de bullying recente do qual foram vítimas.

-“Fulano me chama de quatro olhos porque uso óculos”.

– “Juiz, me chamam de viadinho porque eu gosto de meninos”.

-“Minha melhor amiga falou que eu sou baleia”.

-“Sou vítima de racismo, juiz”.

Em algumas situações de bullying alunas e alunos estão já com sentimento de profundo abalo mental, e até por isso sempre sou acompanhado nas palestras pela equipe de Psicologia do fórum, que procede logo a seguir com o acolhimento inicial das crianças e adolescentes.

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Muitas destas situações ainda não são de conhecimento da escola. A vítima de bullying e outras violências não se sente à vontade para relatar o ocorrido para a direção ou equipe pedagógica. Medo, vergonha, timidez e outros sentimentos permeiam os relatos. E as consequências do pedido de socorro por vezes pioram ainda mais o problema. Também há escolas que não possuem plano pedagógico para lidar com a questão, inexistindo espaço de segurança, escuta e acolhimento.

Não raras situações ainda mais graves são trazidas pelos alunos. Conflitos cotidianos e brigas entre os pais, desestrutura e desrespeito familiar, falta de compreensão com as individualidades das crianças na própria casa. Também relatos de abusos sexuais muito pesados são trazidos no final das palestras. Muitos deles nunca antes relatados.

Enquanto atendia os alunos percebi que Juliana, no meio da fila, estava com expressão de desespero no olhar. Chamei uma de nossas estagiárias de Psicologia, e pedi para a tirasse da fila, e sentasse ao seu lado em uma das carteiras, enquanto aguardava.

Conversei com mais de duas dezenas de alunos, e ouvi todos os tipos de relatos. Anotei tudo para auxiliar nos encaminhamentos pela escola, e também casos que precisariam de uma intervenção adiante pelo fórum.

Ao chegar a vez de Juliana, dirigi-me com ela até a sala reservada pelo diretor. Estava bastante aflita, e conversei sobre outros assuntos antes. Perguntei em que série estudava, qual matéria e professor mais gostava: “língua portuguesa”, respondeu rapidamente. “Eu gosto de escrever. E gosto de desenhar também. A professora de artes é muito legal”. Ao perguntar com quem morava sua expressão facial mudou. Seus olhos ficaram vermelhos, e logo começou a chorar: “Meus pais batem em mim”.

Juliana morava com os tios desde bebê, quando seus pais faleceram em um acidente de carro. E assim chamava e reconhecia o tio e a tia como pai e mãe. Perguntei a ela se queria contar o que acontecia em casa, e porque eles “batiam nela”.

“Eu não sei dizer juiz. Eu não faço nada de errado. Mas eles batem em mim todo dia.” Juliana contou que apanhava dos dois, e sofria todo tipo de agressão. “Puxam seu cabelo até arrancar os fios.” Mostrou marcas de roxo nas pernas e braços. Relatou que não era possível mais usar brinco em uma das orelhas por que de tanto puxar, machucaram-na e sentia muita dor. Relatou que naquela semana o pai havia batido sua cabeça contra o chão e uma parede de seu quarto: “a mãe estava junto e  não pediu para ele parar”.

Perguntei o que esperava que eu pudesse fazer por ela: “Me tira de casa por favor. Eu não aguento mais apanhar. Eu não quero mais ficar com eles, juiz”. Ao questionar se ela confiava em alguma pessoa de sua família, Juliana contou que tinha uma irmã maior de idade, e que gostaria de morar com ela.

Chamei nossa estagiária de Psicologia, pedi que buscasse a mochila e o material de Juliana, e permanecesse com ela. Fui até a sala do diretor: “Ela não voltará para casa hoje, professor. Vamos leva-la para o fórum. Vou chamar o Conselho Tutelar para que converse com os pais, quando eles vierem até a escola buscá-la”.

E assim fomos até o fórum. Já era hora do almoço, perguntei à Juliana o que gostava de comer, e assim pedi um refrigerante e um hambúrguer para ela e outro para mim. Enquanto almoçávamos Maria, sua irmã, chegou ao fórum.

Abraçaram-se longamente. Maria, ainda com Juliana em seus braços, bastante emocionada, dirigiu-se a mim: “doutor, ela já havia me pedido ajuda. Eu tentei conversar com meus pais, mas nada adiantava, eles diziam que estavam educando ela. Algumas semanas atrás eles bloquearam meu contato no celular. Eu estava desesperada. Não sabia o que fazer. Que bom que ela confiou em contar tudo para o senhor” disse enxugando as lágrimas.

Naquela mesma tarde saiu a decisão judicial concedendo a guarda provisória para a irmã, também proibindo qualquer contato dos pais com Juliana. Ela nunca mais os viu. Nos meses seguintes, os pais tiveram todos os pedidos judiciais negados, inclusive pelo Tribunal de Justiça, e com a sentença saiu a guarda definitiva para Maria.

No dia da entrevista com a equipe pericial do fórum Juliana levou o desenho do Super CEM, e pediu à Psicóloga que entregasse a mim. Foi sua forma de agradecimento pelo atendimento ao seu pedido de socorro.

Afinal, o “super-herói” “Carlos Eduardo Mattioli”  havia usado seus “superpoderes” para protegê-la.

*os nomes aqui utilizados são fictícios.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR).

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