“Doutor Carlos, posso passar no fórum te entregar uma lembrança de Natal e um abraço?”

Recebi no início desta semana uma carta, entregue pessoalmente, por uma mulher atendida por nosso Cejusc. Larissa, jovem servidora pública, muito dedicada e comprometida com o trabalho que exerce, cumpre seu papel em profissão de grande risco, com louvor e destaque. Da sua carta constou:

“Eu não poderia passar nem mais um dia sem demonstrar toda minha gratidão pela sua ajuda e todo apoio que me deu em um momento tão delicado. Reuni forças por alguns bons anos para dar aquele passo tão importante, quando o dia chegou, me senti amparada. Não sinto mais a agonia que antes sentia amparada. (…) Prefiro dizer que não foi um atendimento que obtive, e sim um acolhimento seu e de sua maravilhosa equipe”.

O caso muito sensível. Filha adotiva, Larissa buscava conhecer sua história anterior à chegada à nova família mais de vinte anos atrás. Com muito cuidado a acolhemos e atendemos, buscamos as informações em nosso arquivo, e repassamos de forma cautelosa, com afeto, os passos ocorridos até que sua família adotiva a encontrasse.

Servir ao público com excelência é dever também do Poder Judiciário, e o trato com respeito e empatia sempre foi dever buscado nos vinte anos (completados neste mês de dezembro) no exercício da magistratura. Em muitos dos atendimentos o público que nos procura faz questão de demonstrar a gratidão, não raro procura pessoalmente para o agradecimento pelo serviço prestado.

Nas primeiras vezes em que fui procurado para agradecimento trabalhava no norte do Paraná. E no começo da carreira trabalhando como juiz ainda buscava assentar qual era meu exato lugar neste espaço, como deveria reagir. O cuidado para evitar as necessárias e importantes previsões normativas de imparcialidade que regem a função do julgador, levaram-me algumas vezes a delegar o atendimento de quem me procurava para agradecer. Não recomendo a quem começa no cargo atualmente que assim proceda.

Trabalhando com público de zona rural no interior, muitas vezes recebi “presentes” de agradecimento mais inusitados. Um grande pedaço de queijo colonial, ovos (por diversas vezes), linguiça colonial, e uma galinha já preparada para o consumo. Certa vez o atendido levou a galinha ainda viva: “Assim o juiz decide qual a melhor hora de abatê-la para preparar o frango caipira”, disse para a escrivã. E ficou a galinha o dia todo passeando no jardim do fórum até que eu decidisse o que faria com ela. Recusar este tipo de presente pode soar inclusive como ofensa. Quem quer presentear/agradecer não aceita de forma alguma a recusa.

Em uma das primeiras ações de aposentadoria que julguei, um trabalhador rural, Moacir, pouco mais de 50 anos de idade, que em razão dos longos anos de trabalho na lavoura, debaixo do sol e de todo tipo de intempérie sem qualquer proteção, aparentava 20 anos mais. A sentença foi apresentada no dia da audiência. Não houve recurso do INSS, e poucas semanas depois recebeu seu primeiro pagamento.

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Moacir passou no banco sacar o dinheiro e se dirigiu imediatamente ao fórum. Ao chegar, perguntou por mim. Eu estava realizando audiências, e no tempo de espera também foi chamada sua advogada, a pedido dele. Ao sair da última audiência passei no corredor do fórum e Moacir, com alguma dificuldade, apressadamente se levantou da cadeira onde aguardava, chamou a advogada para que se aproximasse e relatou, em alta voz, para que todos ali presentes no corredor lotado o ouvissem: “senhor juiz, jamais pensei que pudesse conseguir essa aposentadoria. O doutor e minha advogada são responsáveis por me dar esse dinheirinho que vai fazer muita diferença em minha vida. Eu estava passando dificuldade, estou doente, e já há muito tempo sobrevivo somente com a ajuda de parentes e amigos. Meu muito obrigado a vocês. Acabei de tirar minha primeira aposentadoria. Metade do valor entrego nas mãos de minha advogada” e assim tirou do bolso de sua calça um maço de dinheiro repassando a ela.

“Eu espero mais um mês até vir o próximo pagamento, porque a outra metade desse valor que recebi é sua, senhor juiz! Nunca vou esquecer o que o senhor fez por mim”. E retirou a seguir o segundo maço de dinheiro já separado do outro bolso e me entregou. “Não posso aceitar. Esse valor é fruto do seu trabalho, é seu por direito. Apenas fiz o que deveria ser feito”, respondi a ele.

-”Doutor Carlos, não vou aceitar NÃO como resposta. Receba como meu agradecimento pela sua sentença, por favor”. Antes que eu pudesse falar algo mais esticou o braço e colocou o dinheiro em minhas mãos, me deu um forte abraço e seguiu para a porta do fórum.

Com a sua saída, repassei os valores à advogada, e pedi à escrivã que elaborasse certidão de todo o ocorrido, e assim constou em seu processo: “Compareceu na data de hoje o senhor Moacir, que entregou metade do valor de seu primeiro pagamento de aposentadoria ao juiz do processo como agradecimento, dinheiro este que ato contínuo foi repassado para sua advogada”.

Muito comum também que pessoas se aproximem do juiz oferecendo favores mesmo sem existir qualquer processo no fórum. Quando cheguei a Bandeirantes, minha primeira comarca de trabalho, nas primeiras semanas João, 16 anos, pediu para trabalhar comigo. Com meu ok poucos dias depois já estava fazendo trabalho voluntário no fórum. Era muito atencioso, proativo, e maduro para sua idade. Confessou-me que seu sonho era trabalhar no fórum, porém todos zombavam dele “porque nunca conseguiria uma vaga sem antes prestar um concurso público”. Foi o primeiro adolescente que recebi, e até hoje sempre abro espaço para a primeira experiência de trabalho. Atualmente, estão em nossa equipe os adolescentes Maria Eduarda, Raoni, Milena e Luiz Otávio.

Como agradecimento pela “vaga” trouxe para mim um curau de milho (muito comum em Bandeirantes), preparado por sua mãe. O curau tem uma textura semelhante a de um mingau e é doce. Dependendo da forma de preparo parece um bolo de milho. Passei a ganhar curau toda semana. Quando não conseguia falar comigo no fórum João levava até minha casa. Certa vez fiquei até tarde da noite fazendo audiências em uma comarca vizinha que também atendia, e ao chegar a casa lá estava João sentado na frente do portão, já por várias horas, com a tigela de curau no colo: “se demorasse um pouco mais eu voltaria amanhã cedo, mas eu tinha certeza que o doutor chegaria hoje ainda”.

Também logo que havia chegado a Bandeirantes, ainda juiz substituto, ao fazer minha mudança do hotel para uma casa alugada, comentei com nossa agente de serviços gerais do fórum que não estava fácil administrar a perda da lavanderia do hotel, que era mais rápida. Na lavanderia do centro demoravam dois dias para devolver as camisas, e eu tinha somente 3 para usar com os (2) ternos na época: “Preciso encontrar uma loja para comprar mais camisas”, comentei no corredor do fórum quando a encontrei.

No dia seguinte tomei um susto chegar a casa e notei que estavam as outras 2 camisas lavadas e passadas, cuidadosamente penduradas no guarda-roupas. A senhora que trabalhava com a limpeza em nosso fórum passou na imobiliária, emprestou uma chave reserva, passou na casa que eu acabara de mudar, levou as camisas para lavar em sua casa, devolvendo ao final do dia, antes que eu voltasse do fórum.

Há também claro muitas pessoas que oferecem favores buscando criar um vínculo para o pedido que farão mais adiante. É preciso cuidado e pronta resposta. Felizmente, a intuição sempre me ajudou a identificar já de plano quando há má índole nas ofertas.

E pedidos escusos inevitavelmente acontecem também. Quando de uma promoção e saída de uma comarca, no dia em que encaixotava meus pertences no fórum, um advogado pediu para falar comigo. Ao adentrar já o alertei: “doutor, infelizmente não posso mais ajudar, pois com a publicação do edital de minha promoção já não sou mais juiz aqui”. O advogado rapidamente respondeu: “Sei disso doutor, mas vou fazer o pedido da mesma forma…” Não deixei que terminasse a frase: “por favor doutor, caso o senhor siga adiante, precisarei agir conforme prevê a lei”. Automaticamente, o advogado mudou sua expressão, e saiu da sala apressado sem mais nada falar. Evitou assim sua prisão em flagrante.

Felizmente poucas vezes fui abordado nos anos seguintes de forma semelhante. O que fica na lembrança destes vinte anos de exercício da judicatura são as incontáveis manifestações de respeito e gratidão.

Nesta última semana também fui procurado pela Juliana, 13 anos, que após muitos anos de abandono afetivo e material do pai, reencontrou-se com ele pessoalmente, alguns meses atrás, com o apoio de nossa equipe de Psicologia e minha direta supervisão. O reencontro (e a reconstrução do vínculo de paternidade) foi dos fatos mais marcantes que vivenciei ao longo do ano.

Na mensagem de Juliana, enviada pelo “chat” do Instagram: “doutor Carlos Mattioli, posso passar no fórum te entregar uma lembrança de Natal e um abraço? ”

*os nomes aqui utilizados, com exceção dos adolescentes que fazem parte de nossa equipe, são fictícios.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR)

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