“Juiz, se eu não voltar com meu ex, ele tem o direito de ficar com os meus filhos?”

A pergunta chegou via WhatsApp e apareceu na tela de meu celular algumas semanas atrás, em número não identificado, com a foto de uma mulher bastante jovem. O dia, um sábado, 11 horas da manhã.

Antes uma apresentação muito respeitosa e gentil, como aliás quase sempre acontece: “Bom dia Dr. Carlos tudo bem (sic). Gostaria de tirar umas dúvidas urgentes”.

“Pois, o pai dos meus filhos quer tirar eles de mim. Caso eu não volte com ele. Disse que se a gente não se acertar ele vai vim (sic) com o Conselho buscar nossos filhos”.

Maria, dona de casa, 24 anos, moradora da zona rural de um município por nós atendido pela Justiça, três filhos meninos, foi recebida já na segunda-feira pelo setor de Psicologia de nosso fórum. Relatou que parou de estudar na primeira gestação, quando ainda estava no oitavo ano do ensino fundamental. Disse que não pretendia voltar o relacionamento, que as “chantagens” aconteciam todos os dias pelo celular, pois o marido trabalha fora em outro município e somente volta para casa quando folga do serviço, sábado e domingo. “No último fim de semana, ele deu um chute na porta da residência”, relatou-nos.

Aparentemente, ao menos no primeiro relato, não houve violência física (ainda). A violência psicológica, porém, muitas vezes é tão devastadora quanto. O desespero da mãe era perceptível no decorrer do atendimento. Ao final da entrevista, fui até a sala de brinquedos do fórum, onde os filhos se distraíam (e não queriam se afastar da mãe), enquanto isso explicava a ela que a conduta do ex-marido também é violência, segundo a lei. Maria ficou muito nervosa, quando seu celular começou a tocar: “é ele de novo”.

Maria foi acolhida e orientada. Aos filhos foi concedida medida preventiva de afastamento provisório do pai. “Eles estão muito estressados e ansiosos com as atitudes dele”, disse. Vale ressaltar que, por ser juiz da criança e adolescente e família não posso decretar medida protetiva para a mulher vítima de violência ou prisão do acusado, sendo essa prerrogativa do juiz criminal. Também foi agendado atendimento dela na Delegacia da Mulher. “Hoje não consigo ir” disse, “eu preciso voltar para casa porque nem almoçamos, nossa casa é longe, e também os meninos hoje faltaram aula porque sou eu quem os leva para a escola, não tenho ninguém para ajudar”. Ainda completou antes de ir embora apressada: “tenho muito medo da reação de minha família. Meu marido é bom de conversa, todos estão contra mim”.

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Casos muito parecidos com o de Maria atendemos todas as semanas. Em algumas semanas, todos os dias. Quando palestrava sobre violência contra a mulher, em uma escola particular, neste mês de março, uma aluna de 14 anos me perguntou:

-“Juiz, isso não acontece muito aqui na cidade né?”

“Acontece e muito!” respondi. “Com mulheres de todas as idades, de todas as classes sociais, com meninas de 14 anos como você, com o primeiro namorado, com mulheres adultas, com senhoras que convivem por 20, 30 anos de relacionamento, com mulheres idosas. Acontece na zona rural, no centro das cidades, em todas as classes sociais, com donas de casa, com dentistas, médicas, advogadas, vereadoras” esclareci.

Após a organização de projetos que acolhem mulheres em nosso CEJUSC (setor de cidadania de nosso fórum) e divulgação por mim e equipe em palestras, eventos e redes sociais, a procura é intensa. Muitas são encaminhadas pelas secretarias de Saúde, Assistência Social, por associações de bairros, pela própria delegacia, pela melhor amiga, pela irmã, pela mãe, pela filha. Mandam mensagens também pelas redes sociais (inclusive pelo meu Instagram, Facebook, WhatsApp). Quando somos procurados a situação normalmente já é bastante crítica, com grande risco à integridade física e psicológica da mulher e dos filhos.

Todos os dias atendemos várias mulheres que dependem financeiramente do companheiro, que precisaram sair de casa em fuga, mulheres em que a casa foi queimada porque o companheiro/marido colocou fogo e tudo se perdeu. A ameaça constante de atear fogo é muito comum.

Muitas mulheres que acolhemos já precisaram permanecer “escondidas” por um tempo considerável porque os ex-companheiros, soltos, as ameaçavam de morte. Várias outras mudaram de cidade, deixando emprego, familiares e amigos para trás. Mulheres com medida protetiva a seu favor ou com o uso de tornozeleira eletrônica pelo homem violento, não raro com pouco resultado prático.

Sempre que termino uma palestra falando sobre violência doméstica uma ou por vezes várias mulheres (e meninas) procuram ajuda ao final. Sempre questiono, incomodamente, o que acontece em lugares e comunidades que não conseguimos estar presentes continuamente.

Os relatos dos atendimentos após pedido de socorro trazidos por elas também são bastante perturbadores. Alguns anos atrás, uma delas me confidenciou que ao ser encaminhada para atendimento social, após a denúncia de maus tratos do ex-marido, dirigiu-se até o CRAS do seu município – A Lei Maria da Penha prevê assistência prioritária e gratuita para a mulher vítima de violência: “A primeira pessoa que me viu entrar estava em uma mesa, mediu-me dos pés até a cabeça, perguntou porque eu estava lá, se tinha dinheiro para andar bem arrumada. Eu fiquei muito constrangida, nem sequer consegui responder, a sala estava cheia e todas passaram a me olhar com desprezo. Eu não consegui passar da porta. É um lugar que eu nunca mais volto.”

A capacitação de todos os setores públicos que atendem mulheres vítimas, inclusive juizados e polícia é uma demanda que lamentavelmente, ainda se encontra muito distante da proteção bastante cuidadosa prevista na lei.

Antes da pandemia, quando fiz uma apresentação sobre violência contra mulher em uma faculdade local, uma aluna me procurou no fim da palestra. Ao lhe cumprimentar e perguntar seu nome ela disse com as mãos trêmulas: “me perdoe juiz, mas eu prefiro não dizer, eu tenho medo de falar meu nome em público, e alguém que esteja por perto possa ouvir e vai que conhece meu ex-marido. Ele vai acabar descobrindo que estou morando aqui”.

A aluna esclareceu que já havia mudado de cidade sete(!) vezes fugindo do ex-companheiro. Em todos os lugares, após ele descobrir seu endereço e sua rotina, passava a persegui-la, “transformando minha vida num inferno” relatou, com lágrimas escorrendo pelo rosto.

Tentei em vão convencê-la a receber atendimento e acolhimento em nosso CEJUSC, e ela rapidamente respondeu: “eu adorei sua palestra, espero que possa ajudar muitas mulheres, mas confesso que não confio mais na justiça. Em todos as cidades em que morei, antes de fugir eu registrei ocorrência, e não consigo entender por que ele ainda não foi preso.”

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Nossos projetos “Rede de Ajuda”, “Primeiro Passo”, “Viva em Paz”, premiados pelo Conselho Nacional de Justiça no final de 2021, procuram dar algum alento para que nunca mais uma mulher precise fugir de seu ex-marido violento e mudar SETE vezes de cidade em fuga, permanecendo escondida com medo de falar seu próprio nome em público.

Que possamos com trabalho incansável mudar a cultura machista, opressora e patriarcal, que causa barbárie na vida de tantas mulheres vítimas de violência do próprio companheiro, namorado, marido. Que possamos ajudar Maria, jovem, evadida da escola, desempregada, mãe de três filhos, cujo atendimento ainda se encontra em fase inicial, para que possa ter logo a tranquilidade e paz necessárias para seguir sua vida adiante protegida! Que não precise mudar de sua própria casa e cidade para poder recomeçar!

Em tempo, em situação de violência atual ou iminente a procura deve ser sempre primeiro pela Polícia Militar, através do número 190. Para toda e qualquer outra situação atendemos pessoalmente (Rua Professora Amazília 780, centro, União da Vitória, das 12h às 18h, de segunda a sexta-feira) e virtualmente toda mulher que precise de orientação e esclarecimento, acolhimento, ajuda ou pedido de socorro, inclusive direta e reservadamente por meio de minhas redes sociais (carlosmattioli).

*o nome aqui utilizado é fictício.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR)

 

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