“Nem mais uma palavra! O senhor agora senta e fica quieto!”

O Fórum é ambiente de muita tensão, mágoas e sofrimento. Especialmente nas áreas da família, criança e adolescente, dificilmente alguém entra em nosso local de trabalho feliz, sorrindo, cumprimentando a todos de forma animada e contente. Ao contrário, atendemos situações muito sensíveis e penarosas, envolvendo decepções que levam ao divórcio, briga sobre os filhos e pensão alimentícia, dificuldades de relacionamento com a família, conflitos, não raro já alongados no tempo, os quais chegam à Justiça diante da total impossibilidade de diálogo, muitas vezes como última tentativa e vã esperança de aliviar a tristeza, a angústia, a ansiedade, e tudo mais que envolve seu problema.

O comparecimento ao fórum normalmente se dá para pedir socorro

O mínimo que se espera do atendimento de serviço público judiciário com essa realidade é o trabalho de atendimento empático que possa ao menos de forma acolhedora amenizar as situações, enquanto se busca por via judicial (ou não) encontrar uma solução para os processos.

O comparecimento ao fórum normalmente se dá para pedir socorro ou tirar dúvidas no “balcão”, entrevistas com a equipe pericial, e também para as audiências que envolvem os processos. Para estas, além dos diretamente envolvidos, as testemunhas, que precisam falar sobre fatos que acompanharam pessoalmente, e certamente a grande maioria delas se pudesse escolher não prestaria depoimento.

Muitos anos atrás presidia uma audiência de um processo na área da família. Os ex-conviventes já haviam sido ouvidos, também algumas testemunhas, pessoas que acompanharam a vida do ex-casal. Os depoimentos demoraram bastante. Claudio aguardava no corredor do fórum há algumas horas, bastante impaciente. Já havia levantado o tom de voz para os servidores do cartório, “disse que iria embora, insistiram para sua permanência, e ele continua lá reclamando e tumultuando o ambiente doutor, desde que chegou”, relatou-me o estagiário que auxiliava na realização da audiência.

Perguntei à advogada que o havia indicado, se o seu testemunho seria realmente necessário. “Precisamos ouvi-lo, Doutor. Há informação de que ele acompanhou os fatos que relatei no processo, e se isso realmente ocorreu seu depoimento será de grande importância”.

E assim chamei Claudio, que entrou na sala de audiência gesticulando e esbravejando: “Finalmente! Achei que ficaria esperando até a noite!”

Perguntei seu nome completo, pedi que se sentasse no lugar que apontei. Ele nem sequer ouviu. “O senhor sabia que estou perdendo o dia de trabalho? Quem vai pagar por isso? Eu não pedi para vir aqui hoje! E também não sei nada sobre esse casal aí.”

Novamente pedi para que tomasse seu lugar, que iria lhe explicar da importância do seu testemunho para as partes que estavam se divorciando. Também lhe disse que poderia levar um documento do fórum para abonar sua falta no trabalho, e que assim não teria o dia descontado pelo seu empregador.

Claudio rispidamente respondeu: “eu não tenho carteira assinada, trabalho informal e ganho por diária. Levar um papel lá não vai adiantar nada. Eu deveria ter ido embora, quando não me chamaram na hora marcada na intimação. Aliás, nem deveria ter vindo para esta porcaria”.

Pedi respeito e consideração pelos que ali estavam ansiosos pela audiência, também pelos servidores e advogados, que estavam trabalhando. Para minimizar o clima pesado e desrespeitoso na sala de audiência, rapidamente fiz as perguntas sobre a sua qualificação pessoal, e repassei à advogada que o indicou, para que assim fizesse suas perguntas.

Iniciada a primeira pergunta, questionou a advogada sobre a briga do casal na frente dos filhos quando chegavam em casa, e que Claudio teria presenciado, por morar na frente, quando este rapidamente disse: “Eu não vi nada. Não sei do que vocês estão falando”. A advogada então informou que nada mais havia a perguntar.

Dirigi-me ao advogado da outra parte e ao Promotor de Justiça, que informaram não ter nenhuma pergunta. “Como assim?” disse Claudio elevando o tom de voz. “Que absurdo é esse? Eu não acredito que vim aqui perder o dia de trabalho para essa palhaçada?” emendou já se levantando.

Novamente pedi respeito, e que aguardasse mais um minuto para colhermos sua assinatura na ata de audiência. Mas Claudio já nada ouvia, e passou a usar palavras ainda mais pesadas.

Não há dúvida que sua conduta já caracterizava nesse momento, alguns crimes previstos no Código Penal. Automaticamente bati fortemente a mão na mesa e com olhar fixo disse a ele também em alto tom de voz, quase aos gritos: ”Nem mais uma palavra! O senhor agora senta e fica quieto!!”

Todos na sala se assustaram, com a forte batida na mesa, e com minha ordem. Menos Claudio, que deu as costas e se dirigiu à porta da sala de audiências, rapidamente saindo dali. Pedi ao estagiário que corresse atrás dele e avisasse o Policial Militar que fazia a segurança do fórum, para que efetuasse sua prisão.

Alguns minutos após o estagiário (que hoje é advogado e professor universitário) voltou, e com olhar abatido relatou: “não deu tempo doutor. Ele correu mais rápido que todos nós”.

Nos anos seguintes situações parecidas, algumas até piores, voltaram a ocorrer no fórum (não muitas, felizmente). Porém nunca mais bati a mão na mesa daquela forma, nem levantei a voz como fiz aquele dia, a qualquer outra pessoa.

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Atualmente, quando há alguém mais exaltado, a abordagem da equipe com apoio do setor de Psicologia, é imediata. Sou também sempre acionado, e atendo pessoalmente, ouvindo os reclamos atentamente.

Alguns anos atrás atendemos uma reclamante, Lucimara, em caso que envolvia conflito familiar e o registro de imóveis. Um grande conflito familiar já de várias gerações, com consequências cíveis e criminais. Lucimara comparecia toda semana ao fórum, fazia seus relatos aos gritos, deixava toda equipe tensa, reclamava da demora com ameaças.

“Ela já processou (representou) outros juízes, Delegado de Polícia, Promotor de Justiça, todos temem sua postura agressiva. E quem ‘bateu de frente’ com ela se incomodou bastante”, me reportou uma servidora. Em uma de suas vindas ao fórum, ao perceber o tumulto interrompi uma audiência para falar diretamente com ela. Não deu tempo. Acabara de sair bradando aos gritos “que procuraria o CNJ e a Corregedoria do Tribunal de Justiça”.

Pedi que a equipe agendasse uma conversa dela comigo. No dia e horário que escolhesse. E na hora combinada, além do café fresquinho e da água mineral, levei para a sala de atendimento algumas guloseimas que a equipe havia comprado a meu pedido. Capricharam na compra, e quando ela entrou na sala fez um olhar de surpresa para a mesa, cheia de biscoitos e bolos, que mais parecia posta para um café colonial.

Pedi que sentasse, e antes mesmo que terminasse o movimento já emendou perguntas sobre seu caso. Antes de responder perguntei seu nome, onde morava, com o que trabalhava. Lucimara contou uma longa história do problema familiar, as fraudes que teriam sido praticadas nos encaminhamentos ao registro de imóveis, o prejuízo financeiro que sofreu, o sofrimento dela e da mãe com toda a situação: “ninguém consegue resolver isso”.

Servi a ela uma xícara de café e ao olhar para a comida sobre a mesa disse: “Pode se servir à vontade. Montamos o lanche para seu especial atendimento hoje.”

A conversa foi longa. E também bastante demorado foi o tempo para resolução de seu complexo caso. Lá na frente, quando de minha sentença, Lucimara recorreu. Nesse meio tempo veio inúmeras vezes novamente ao fórum. Em algumas delas coincidiu de vê-la pelos corredores ou no balcão de nosso prédio, quando me cumprimentava tranquila e educadamente. Nunca mais ouvi qualquer reclamação de nossa equipe a seu respeito.

*os nomes aqui utilizados são fictícios.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR)

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