“O caminho longo e dolorido que eu e as meninas temos pela frente vai ser muito difícil”

Três mulheres. Três histórias de mulheres vítimas de violência dos seus companheiros. Uma delas não está mais aqui para contar sua tenebrosa história.

Celia trabalhava como assistente social na prefeitura de sua cidade. O marido, policial aposentado. Do casamento uma filha, dois anos. Já havia procurado sete vezes a Delegacia de Polícia onde morava para registrar ocorrência dos atos de violência praticados pelo marido. Como sua prisão não saiu, e o companheiro não cumpria a medida de afastamento, mudou-se de cidade em fuga.

Após alguns meses de tranquilidade longe das situações de violência e ameaças, o ex-marido descobriu que estava morando na cidade de sua mãe. Foi quando Celia nos procurou. Como ele usava o “direito de ver a filha” como forma de se aproximar e perseguir Celia, decretei medida de afastamento também da filha.

Antes da proibição de visitas à filha, em uma das vindas para a cidade, que ora mora Celia, perseguiu-a por longos minutos pelas ruas da cidade, somente desviando quando a mulher conseguiu se aproximar da delegacia. “Eu não sei como não bati o carro doutor Carlos. Estava toda trêmula, não conseguia mais sentir meu corpo. Minha filha chorando no banco de trás.

Montamos um plano de atendimento para Celia em nosso Cejusc, setor de Cidadania que acolhe e acompanha mulheres vítimas de violência doméstica. Mas o caminho é tortuoso, mesmo com ajuda oficial. O botão do pânico foi negado a ela. A medida protetiva expirou o prazo (120 dias) no fórum de origem, e não foi renovada.

Graças ao nosso apoio e orientações da polícia militar local, que a acompanha de perto, Celia tem um mínimo de segurança para continuar vivendo (sobrevivendo).

Joana morava com o marido, alcoolista crônico e dois filhos, crianças, um menino e uma menina. Ameaçava-a constantemente. Quando chegava a casa, tarde da noite, alcoolizado sempre a agredia.

Joana encontrou meu número de WhatsApp e pediu ajuda. Fizemos seu acolhimento. Pediu um tratamento médico para o marido poder se recuperar da dependência. Nos áudios que me enviava tinha um forte sotaque, linguagem simples, e uma percepção de angústia e medo constantes.

Joana sabia que a situação não poderia esperar muito tempo: “Faz alguma coisa juiz, ele falou que se eu não voltar atrás no pedido de internação médica, ele vai se matar”.

Encaminhei Joana para a formalização de boletim de ocorrência. Pedi que fosse avaliado ao menos o afastamento da mulher e filhos ou mesmo a sua prisão, até que ocorresse sua internação médica. Também determinei judicialmente que a saúde do município realizasse avaliação médica urgente. O atendimento médico 15 dias para frente. Mandei antecipar.

Porém não houve tempo para mais nada. Dois dias depois o marido de Joana chegou embriagado a casa, agrediu-a novamente, pegou a motocicleta e saiu para uma estrada de acesso à cidade. Alguns quilômetros adiante jogou a moto na frente de um caminhão que vinha em sentido contrário. A morte foi instantânea.

Joana quando recebeu a notícia me chamou no whats. Clamou em áudio, em meio ao choro e revolta: “porque vocês demoraram tanto? Eu falei que ele iria se matar. Como vou cuidar de meus filhos sozinha agora, sem dinheiro, sem nada? Como vão crescer os meus filhos agora sem um pai?

Maria e José eram pecuaristas. Ele ainda empresário, ela empregada em um comércio de produtos rurais. Moravam na zona rural e tinham uma propriedade onde plantavam, produziam e tinham várias criações de animais. Do relacionamento três filhos, um menino adolescente, duas meninas, uma criança e outra pré-adolescente.

Quando o caso chegou à Vara da Família já havia dois processos criminais e medida protetiva de afastamento do marido. A mulher narrou no processo de divórcio as condutas de violência física, verbal, psicológica e ameaças. Na defesa o homem afirmou ser pai amoroso e carinhoso, e que “formavam uma linda família”. Disse também que desconhecia os motivos que levaram a mulher a “tomar estas atitudes e fazer estas acusações”.

Pedi que o setor de Psicologia procedesse com o acolhimento da mulher. O relato foi chocante. Para além de toda a violência que já vinha sofrendo por muitos anos, no dia anterior havia comparecido novamente à Delegacia de Polícia. Quando chegou a casa, o marido a esperava com uma arma de fogo na cintura. Estava descumprindo a medida protetiva. Exigiu que ela entrasse em casa e mantivesse relação sexual com ele, senão a mataria. Disse que se procurasse a polícia iria matá-la e se suicidaria em seguida. Ameaçou também os filhos.

Por decisão judicial determinei o afastamento do homem também dos três filhos, e remeti cópia de todas as informações para a Vara Criminal, para que pudessem emitir uma ordem de prisão.

+ Possui alguma sugestão? Clique aqui para conversar com a equipe de O Comércio no WhatsApp

Poucos dias após, o homem procurou Maria em um local público. Quando o viu, ela chegou a correr. Mas não conseguiu escapar. Maria levou quatro tiros nas costas e um na nuca. O ex-marido suicidou-se, em seguida.

Quando atendi os filhos no fórum a mais nova, 9 anos de idade, implorou em desespero: “ele matou minha mãe, quero ela de volta juiz…

Na última semana atendi uma jovem que passou pela segunda situação de violência física do ex-namorado em curto período. Além de a perseguir e a agredir psicologicamente constantemente, quebrou seu aparelho celular, e a ameaçava caso procurasse ajuda. Em desalento com a situação e com medo, fez uma publicação no Instagram no qual posta fotos da agressão física, um vídeo do ex-namorado agressivo, e “prints” de conversas com as ameaças. Atendi ela pessoalmente no dia seguinte, em um sábado, com ajuda do setor de Psicologia.

Como a postagem “viralizou”, apareceram várias outras mulheres vítimas do mesmo homem em relacionamentos do passado, com ameaças, agressões físicas e verbais, dependência, pressão e violência psicológica. Procuramos pelas redes sociais todas elas e oferecemos ajuda.

Nenhuma delas havia registrado a ocorrência na época, por medo, vergonha, desesperança, receio do julgamento público que costuma ocorrer com as mulheres que denunciam. “São várias meninas, mas nem todas estão prontas e seguras, e não querem aparecer”. Duas delas, com o ato de coragem da jovem que fez a publicação sentiram-se motivadas a seguir adiante, e vamos ajudá-las, por meio de nosso projeto chamado “Rede de Ajuda”.

As jovens vítimas sabem as dificuldades que ainda vão passar. Uma delas manifestou-se publicamente em uma rede social: “o caminho longo e dolorido que eu e as meninas teremos pela frente vai ser muito difícil, sorte que estamos juntas nos fortalecendo e graças a Deus com muito apoio”.

Outra vítima me respondeu por mensagem: “pretendemos levar adiante, ele não tem que sair impune dessa vez, não há como desfazer o que ele já fez, mas há como evitar que ele torne a repetir isso com outras mulheres”.

Mais que o ato de coragem das três jovens vítimas, podemos e devemos frear o ciclo de violência, para que tragédias ainda piores sejam mais difíceis ou impossíveis de serem evitadas adiante.

*os nomes aqui utilizados são fictícios.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR).

Voltar para matérias