“O latido do cachorro do vizinho não para doutor. É todo dia. E as crises de minha filha só pioram”

Havia terminado a palestra na escola já tarde da noite. O auditório montado no pátio ficou completamente lotado de alunos e familiares. Todos ouvindo com atenção minha fala sobre bullying e outras violências. Ao final, uma longa fila de pais e alunos se formou para falar pessoalmente comigo.

No primeiro atendimento a mãe, Valeria, acompanhada da filha Francieli, apresentaram-se e perguntaram: “Lembra de nós  doutor?” Como não as reconheci de imediato respondi: “Vou precisar da ajuda de vocês para reconhecê-las”, e de pronto esclareceram: “foi o atendimento do cachorro que não parava de latir”.

Com o avanço da medicina atualmente é possível identificar com maior clareza, em idade muito precoce, transtornos como a Dislexia, Síndrome de Asperger, TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade), TEA (Transtorno do Espectro Autista), entre outros. O diagnóstico precoce permite melhor compreensão dos sintomas, cuidado mais qualificado no dia a dia, inclusive no ambiente escolar, tratamentos que significam melhora da qualidade de vida de crianças e adolescentes, e especialmente diminuição da desinformação e preconceito. Também atendimento individualizado nos ambientes frequentados pelas crianças e adolescentes que possuem a identificação dos transtornos.

Mesmo com o diagnóstico e leis protetivas a tarefa não é nada fácil, na medida em que as pessoas de forma geral ainda não estão capacitadas para lidar com as individualidades daqueles que estão a nossa volta.

O caso de Francieli foi encaminhado pelo Conselho Tutelar. No ofício do órgão que busca proteger o público infantojuvenil, o relato de que a adolescente tinha o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista, apresentando crises com gritos e fácil irritação. Em tratamento e uso de medicação, com evolução gradual, após a aquisição de um cachorro pelos vizinhos, Francieli passava por grande piora com os latidos do cão todos os dias. A situação causava grande incômodo, quando a adolescente quebrava objetos em casa, gritava incessantemente, passando por momentos difíceis e tristes, à proporção em que os latidos duravam o dia todo, enquanto os donos estavam ausentes trabalhando.

Segundo o Conselho Tutelar a mãe Valeria já havia procurado os vizinhos, notou que o cão era bem cuidado, e não sofria qualquer tipo de maus-tratos. Porém, como os latidos continuavam, e as crises da filha estavam piorando muito, resolveu procurar ajuda, inclusive com a Defesa Animal do Município.

Os vizinhos estavam muito contentes com a nova companhia. O cão da raça pitbull segundo eles era dócil, e os latidos próprios de seu jeito de manifestar, quando via qualquer movimentação na rua. Porém, diante das reclamações contínuas das vizinhas, em ato de desabafo narraram o fato no Facebook, inclusive oferecendo o cachorro em doação.

A publicação na rede social “viralizou”, e só piorou a situação toda. Grupos de proteção de animais (muito organizados e ativos em nossa região) passaram a defender o “direito” deles de ter o animal doméstico em casa. Como a “história” não foi contada com todos os detalhes no Facebook, quando a família de Francieli foi identificada, e como não raro acontece em situações dessa espécie na internet, passaram a receber ameaças, e xingamentos de toda espécie, tornando a situação ainda mais difícil.

Em nosso CEJUSC (Centro de Cidadania do Fórum) acolhemos todos os envolvidos. Para a mãe e a filha prometemos buscar uma solução que evitasse inclusive a necessidade de um processo judicial. Com os documentos médicos e laudos sobre o transtorno de Francieli apresentados, estava claro que o latido do cão era um dos principais motivos do agravamento das crises. Não havia possibilidade de mudar de residência em razão do alto custo, o que também não era seu desejo.

No atendimento dos vizinhos o desalento. A grande alegria com a vinda do animal de estimação para a casa se transformou em um incômodo que não esperavam passar. Ao ser explicado a eles que o direito de propriedade não é absoluto, mostraram-se muito tristes diante da possível necessidade de ter que se desfazer do cão, doando-o a terceiros. Não pretendiam causar qualquer mal às vizinhas, porém gostariam de permanecer com o animal. A eles também foi prometida a busca de uma solução que pudesse evitar a drástica medida.

Quando a equipe de Psicologia me procurou ao final dos atendimentos, nem mesmo nós sabíamos como tudo terminaria: “O que vamos fazer agora Doutor Carlos?”

Para as duas famílias foi designada assessoria jurídica. De um lado a Defensoria Pública passou a atender a família da mãe Valeria e filha Francieli. Para os vizinhos uma advogada foi indicada. E na primeira audiência de mediação, tudo indicava que a situação ficaria ainda mais fora de controle. O diálogo respeitoso do começo logo passou para acalorada discussão, com acusações recíprocas de falta de compreensão, seguindo um bate-boca quase sem fim.

Pedi aos envolvidos que voltassem a reunir em outra sessão de mediação duas semanas adiante. “Não vai funcionar, a discussão entre eles foi muito feia”, relatou-me a servidora mediadora. “Vamos ao menos tentar”, respondi.

A discussão e o debate mediados pelo fórum permitem que todos os envolvidos coloquem as angústias que estão guardadas no seu interior para fora. Em ambiente neutro, com o auxílio técnico dos profissionais de mediação, permite-se trazer as reclamações de forma firme, ainda que por vezes mais exaltada e veemente, abrindo assim espaço para alívio imediato, e reflexão contínua na sequência.

Felizmente, o caso do cão pitbull que não parava de latir, e causava a intensificação das crises na adolescente autista, permitiu aos vizinhos que pudessem melhor compreender as individualidades de Francieli, e as mudanças que poderiam realizar para encontrar ambiente de paz entre os vizinhos.

Para que pudessem todos continuar a residindo em suas casas, e o animal de estimação permanecesse com seus donos, estes concordaram em tomar uma série de medidas que minimizas se o sofrimento da adolescente. Prometeram reformar a residência, retirando os elementos vazados no muro, e aumentaram o tamanho da cerca da propriedade. Também se comprometeram a incrementar os passeios do animal de estimação quando estivessem em casa, e procuraram médico veterinário para a busca de medicação para o excesso de latidos.

Cumpridas todas as medidas o cão continuou a transitar pelo ambiente da casa feliz e saudável, diminuindo significativamente os latidos. E com a mudança de comportamento do cachorro, Francieli voltou a ter a paz que necessitava para seguir seu tratamento. As crises diminuíram, e o laudo médico da paciente mostrou significativa melhora na sua qualidade de vida.

Quando ao final da palestra na escola Valeira e Francieli comentaram sobre o caso do cachorro respondi: “Sim, claro,  eu lembro de vocês!! Em que posso ajudar hoje?” questionei. “Nada doutor, estávamos acompanhando a sua palestra, e não poderíamos ir embora sem vir aqui agradecer. Tudo voltou ao normal em nossas vidas. O que o senhor conseguiu fazer foi um verdadeiro milagre. Muito obrigado!”

O “milagre” relatado pela mãe nada mais foi do que a concessão de um espaço de escuta e acolhimento, seguida de uma oportunidade para que os envolvidos conversassem e pudessem encontrar a melhor forma de convívio. A cultura da pacificação social é missão que pode e deve sempre ser promovida pelo Poder Judiciário, preferencialmente de maneira preventiva, antes do agravamento dos casos, e mesmo da judicialização ou da emissão de medida coercitiva pela Justiça.

A situação foi trazida pelo Conselho Tutelar ao fórum no início de um mês de julho, e a última audiência realizada antes do fim do mês de agosto seguinte. As medidas acertadas em audiência foram todas cumpridas pelos vizinhos em menos de 10 dias após.

*os nomes aqui utilizados são fictícios.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR)

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