“Sei que jamais irá lembrar de mim, mas o senhor me ajudou muito”

Todos os dias o juiz realiza audiências em que tem contato com várias pessoas envolvidas em processos judiciais. Ao longo de cada ano centenas delas são realizadas, o que impede que todos os casos permaneçam na memória ao longo do tempo. Já para os que passam por uma audiência judicial, especialmente nas varas da Família, em casos tão sensíveis cujos intimidade e sentimentos afloram de maneira bastante significativa, o contato com o juiz que julga o processo é dos mais marcantes, muitas vezes momento único, que permanecerá por toda vida na memória afetiva dos envolvidos.

"Sei que jamais irá lembrar de mim, mas o senhor me ajudou muito"

Stefany era advogada em um renomado escritório de advocacia na capital. Começou a conversar comigo pelo Instagram, e contava rotineiramente sobre seu trabalho. Recebia uma boa remuneração, possuía ótimo reconhecimento dos demais advogados colegas de trabalho, e uma rotina de atendimento de causas de grande importância e repercussão. Mas não estava contente, dizia-me: “Meu grande sonho é seguir a carreira da magistratura, não sou feliz no que estou fazendo. Gostaria muito de poder trabalhar no judiciário enquanto estudo e busco a aprovação em concurso público, ter a experiência da rotina do magistrado, mas tenho receio da mudança, da diminuição do salário” me relatou certa vez. Seguindo minha intuição incentivei-a “mudar de ares”, entregar o currículo para trabalho na assessoria na justiça para juízes. “Sua experiência é excelente! É questão de tempo para alguém lhe chamar”.

E qual não foi a surpresa quando poucas semanas depois desligou-se do escritório, contou-me que já estava selecionada para uma entrevista, e logo após foi aprovada para trabalho em um gabinete judicial em Curitiba, ao lado de um juiz.

Surpresa ainda maior quando em um de seus relatos sobre a alegria na nova função me disse que admirava meu trabalho, desde que havia julgado o processo de divórcio de sua mãe: “eu era adolescente na época, acompanhei de perto o seu trabalho, a angústia e o sofrimento da mãe com a separação, o alívio da forma como você a tratou na audiência de seu processo, e o contentamento e o respiro aliviado com a sentença no final do processo”. “Eu lhe serei eternamente grata por isso”, completou.

Já na nova função de assessoria na justiça Stefany me procurou em um sábado pela noite: “é a primeira vez que estou trabalhando em um plantão judicial, me ajuda!!”

E seguiu: “estou estudando um caso de violência doméstica”. Expliquei a ela que quando atendo processos criminais nos plantões dou uma valoração bastante qualificada para a “palavra da mulher vítima”, e que não costumo fixar prazo para as medidas protetivas, uma vez que com prazo curto da medida de afastamento (como muitas vezes acontece) a mulher fica insegura e desprotegida pouco tempo depois da procura de ajuda. Há muitas situações em que o homem violento volta a procurar a mulher, não raro retornando para casa no dia seguinte da expiração do prazo da medida de proteção. Falei nesse dia também sobre as consequências psicológicas maléficas das condutas de homens que seguem o ciclo da violência, fazendo promessas de mudança de comportamento (que são tênues e fugazes), e logo a violência retorna, muitas vezes de maneira muito pior adiante.

Dias depois dessa conversa, quando me procurou para agradecer pelas sugestões que a ajudaram a municiar as decisões de seu chefe no plantão, Stefany confidenciou que a reflexão que causei fora tão profunda, que a fez perceber que vivia ela em um relacionamento extremamente tóxico, abusivo e manipulador, a incentivando a terminar o seu namoro já de muitos anos logo adiante. “Eu estou muito bem agora. Aliviada acima de tudo. Muito obrigada por mais uma vez participar tão intensamente de minha vida”, agradeceu.

Meses atrás recebi mensagem no Facebook de Maria Clara: “Boa tarde Dr. Juiz podes me enviar o seu whats? Preciso falar-lhe”. Passei o número e jamais poderia imaginar a emocionante mensagem que receberia logo depois.

“Boa tarde meritíssimo Carlos Eduardo, sei que jamais irá lembrar de mim, mais o senhor me ajudou muito a 14 anos atrás” (sic). Maria Clara contou que após um breve relacionamento teve uma filha, e que o pai não a registrou; que ele na época dizia “isso não daria em nada”, que não existia lei que o juiz registrasse no lugar o pai, desestimulando-a a procurar a justiça. “Mas fui em frente”, relatou.

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“Na última audiência do processo eles pediram para levar uma testemunha que comprovasse que ele sabia da existência da minha filha. Pra minha sorte na hora que começou entrou aquele rapaz com uma bandana preta na cabeça e os cabelos longos, sim era o senhor juiz que estava ali”.

“Foi breve mais inesquecível pois leu os papeis, me perguntou se o pai era ciente da filha eu mostrei uma foto em que ele segurava a menina e o Dr bateu o martelo, ele o pai, e que seja expedido o registro e a sentença de 1 salário mínimo de pensão”. (sic)

“Sim Doutor muito obrigada por mostrar para ele que sim existe lei para o juiz registrar no lugar do pai, quando eu peguei o registro com o nome dele te abençoei com toda minha fé e alegria, pois a justiça foi feita.”

“Então vim embora para Santa Catarina e entrei com processo de pensão aqui, demorou 4 anos, mas prenderam ele. E pra surpresa minha e dele me devia 22 mil de pensão atrasada e na época o advogado dele querendo fazer um acordo comigo disse que não entendia porque o senhor colocou essa sentença, eu disse porque ele é o senhor Juiz!”

“E até hoje sou grata pelo que o senhor fez por mim, e pelo pai dela, pois só tendo que pagar os atrasados e a pensão ele se tornou trabalhador. Então o senhor não ajudou só a mim, mas também a um homem a ter uma profissão e dignidade que um emprego proporciona, pois ele nunca mais atrasou um mês sequer”.

Lia as mensagens já tomado pela emoção quando vieram informações ainda mais tocantes: “E ano passado tive um filho e qual nome coloquei nele? Sim, Carlos Eduardo, nome de homem honrado e um super juiz. Obrigado por muito”.

“Hoje minha filha já está com 16 anos”, enviando logo a seguir a foto da filha no whatsapp. Comentei com Maria Clara que estava no começo da carreira como juiz, que a audiência havia ocorrido logo que cheguei a União da Vitória. Ela respondeu:

“Mas já chegou fazendo a coisa acontecer. O senhor lembra quando tinha os cabelos longos? Na hora eu pensei, quem é esse rapaz? Aí foi lá, sentou e o pau torou kkkk. Quando cheguei em casa disse para a mãe, você nem imagina quem é o juiz: Axl Rose kkkk”.

Ainda contou nas mensagens: “Quando eu passava na frente da casa dele com a minha filha pequena no colo, a mulher dele saía na janela e debochava de mim, dizia ‘aquela seca ta passando com a macaquinha no colo’, não adianta que ele não vai registrar ela, não existe lei e juiz que faça isso. Quando saiu o registro no nome dele chorei tanto, bati uma xerox e levei para ela e disse, está aí a lei, registrada no nome do pai”.

“Quando ela nasceu minha família preconceituosa dizia que eu tive uma negrinha filha de um carroceiro e eu dizia, essa negrinha que vai me dar muito orgulho ainda. E pensa numa menina querida, responsável e obediente Dr., ela é meu maior orgulho, nunca reprovou de ano, faz jovem aprendiz na Havan, quer ser veterinária, consegui um curso para ela, nunca preciso mandar ela para a aula, para curso ou trabalho. Ela acorda sozinha as 5:30h, toma banho se arruma e vai, pega o dinheirinho dela e quer me ajudar em casa, não pensa em namorar cedo, diz querer focar nos estudos”.

Maria Clara seguiu: “que minha história sirva de exemplo pras mães irem adiante mesmo com todas as dificuldades e humilhações, como as que passei. Já fazia tempo que eu queria mandar mensagem, e quando descobri que o senhor tinha face acendeu a vontade. Agora eu acompanho seu trabalho no face e fico emocionada, em ver o quanto trabalha por União da Vitória. O senhor deveria ser reconhecido no Brasil todo. Se quiser usar esse relato nas suas crônicas pode usar”.

“Eu amo ler as crônicas e choro lendo elas” escreveu, fazendo-me também chorar quando recebi as mensagens, e novamente agora quando escrevo esta crônica, uma homenagem para a Jennifer, para meu xará Carlos Eduardo, e especialmente para a sua mãe batalhadora e grande exemplo para todos nós, Maria Clara.

*o nome da assessora aqui utilizado é fictício. Já os nomes de Maria Clara, Jennifer e Carlos Eduardo são reproduzidos, com a autorização da mãe.

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