Especial: O último transporte

Classificado como serviço essencial durante a pandemia da Covid-19, de acordo com o Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020, o setor funerário brasileiro não interrompeu as suas atividades durante o Lockdown (protocolo de emergência que significa confinamento). Em 2020, a Administração de Segurança e Saúde Ocupacional (Osha), do Departamento de Trabalho dos Estados Unidos, afirmou que os trabalhadores responsáveis pelo cuidado pós-morte compõem o grupo de alto risco, devido a potencial exposição a fontes conhecidas ou suspeitas de SARS-CoV-2. Fato é que a pandemia, por sua vez, revelou tantas outras faces que, até então, eram veladas.

O último transporte

Funerária de União da Vitória conta com frota própria e moderna para o translado do corpo

O funcionamento da logística do transporte funerário no Brasil mudou – e muito – ao longo das décadas. A atividade é considerada uma das mais importantes para o momento pós-morte. Apesar de doloroso, o translado do ente querido faz parte do enterro e o carro funerário é indispensável para que o transporte seja feito de maneira eficiente.

Mundialmente falando, foi entre 1901 e 1907 que os carros funerários surgiram. O proprietário de uma funerária americana, HD. Ludlow, foi o responsável por sua criação, o qual encomendou a construção de um veículo para o transporte fúnebre em um chassis de ônibus.

Conforme relatou a Central Traslados Funerários os primeiros carros do segmento que entraram em uso tinham motores elétricos, sendo que o primeiro carro funerário movido com motor à combustão surgiu em 1909. Este novo tipo de carro funerário foi bastante popular entre os clientes mais ricos da época, sendo que a funerária e Ludlow o utilizaram para 13 funerais e, em seguida, ocorreu a substituição do mesmo por um modelo maior. O transporte fúnebre inventado por Ludlow foi uma inovação para o período.

Diferente de um meio de transporte comum, um carro funerário possui modificações. Essas alterações são necessárias para que ele seja considerado um meio de deslocamento funeral adequado.

No Brasil, o carro funerário passou a ser divulgado quando a Chevrolet Caravan começou a ser fabricado. Para a época, utilizar o veículo era considerado luxo; a população mais pobre que não tinha como usar fazia o translado utilizando redes, carros de boi, carroças, carruagens, vagão ferroviário ou mesmo a pé. Inclusive na Ferrovia Paulista existiu um Vagão Funerário; ele foi reformado e está exposto no Museu Ferroviário de Paranapiacaba (Santo André-SP).

Com o passar das décadas o mercado do luto apresenta expansão e acompanha as tendências mundiais. A Associação Brasileira do Setor de Informações Funerárias (Abrasif) havia contabilizado, em 2019, que no Brasil existem 13.720 empresas privadas ligadas ao ramo.

Segundo a Associação Brasileira de Empresas e Diretores do Setor Funerário (Abredif) o chamado de death care (cuidado com a morte, em tradução livre) fatura cerca de R$ 3 bilhões por ano. O segmento apresenta na atualidade diversas opções para um último adeus. Já um relatório do Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep) diz que o faturamento anual do segmento no Brasil soma mais de R$ 7 bilhões; segundo a entidade a tendência é de expansão, por conta de novos serviços, inclusão dos animais de estimação, novas tecnologias e transmissão online de velórios.

Historicamente, a taxa de mortalidade de um país e a demanda por serviços funerários tem poucas variações de um ano para o outro. A pandemia foi uma situação isolada. O Brasil atingiu um recorde histórico de óbitos em 2020 e, uma taxa anual de crescimento de mortes quatro vezes maior do que a série histórica. Dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) aponta que 1,4 milhão de pessoas morreram no último ano no país, representando um aumento de 8,6% se comparado a 2019.


Funeral sem despedida 

“Famílias chegam até nós, nos momentos mais difíceis e dolorosos, que é quando perdem àqueles que amam. Elas chegam na fase da negação do luto. A Covid-19 agravou essa percepção de perda. É como se as pessoas não tivessem morrido, mas sim sumido. O que acontece é que a pessoa vai ao hospital – em alguns casos ficam internadas e, neste ínterim, a família não a vê mais; muitos vão direto para o sepultamento sem a chance do último adeus e do último olhar. É uma sensação de impotência das famílias”.

Andréia Vieira Marques de Oliveira, é diretora na Santa Rita Serviços Funerários em União da Vitória, cidade localizada no estado do Paraná, distante aproximadamente 200 quilômetros da capital Curitiba. Juntamente com o esposo, Marcelo Juchem de Oliveira, sócio de Andréia na funerária, eles fizeram – e ainda – fazem parte da linha de frente de atendimento à Covid-19. Andréia afirma que o setor funerário, não apenas de União da Vitória, mas em todo o país, sentiu o impacto do aumento acelerado das mortes pela doença respiratória.

Andréia Vieira Marques de Oliveira

A Arpen – que é o portal de Transparência do Registro Civil, sendo um site de livre acesso, aponta que em 2020, o número de óbitos no Brasil cresceu 14,96% em relação ao ano anterior. Foram 1,45 milhão de mortos contra 1,26 milhão em 2019. Foi o ano em que mais morreram pessoas na história.

Lembra Andréia que em março de 2021, as funerárias brasileiras foram orientadas a prepararem um plano de emergência na pandemia. O alerta foi emitido pela Abredif com o objetivo de evitar aglomerações em cemitérios ou enterros coletivos nas cidades com maior índice de mortes por Covid. No ápice da pandemia grande parte das cidades do País haviam suspendido os velórios para evitar que houvesse risco de contaminação no momento dos sepultamentos.

Em suas diretrizes oficiais, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aconselhou evitar velórios e missas, porém quando eles de fato aconteciam, eram de curta duração, com número reduzido de pessoas, sem toques, abraços e aproximações. “Foi um momento diferente de tudo o que a gente já viveu. Creio que ninguém, até hoje, passou por uma situação como essa. Nós, aqui na funerária, sempre preparamos uma homenagem para àquela pessoa que morreu; não é uma homenagem para a morte, mas sim para a vida dessa pessoa. No período tudo isso mudou. Vamos em um velório para amparar e confortar aquela pessoa que ficou. Na pandemia o ato ficou sem abraços e não foi mais a mesma coisa. Para nós foi um período muito frustrante porque era como se não estivéssemos executando o nosso trabalho de maneira adequada”, questiona.


Necessidade do adeus

Para Andréia, a morte de um ente querido leva a um processo de elaboração da perda. “Tem pessoas que não querem ver o seu ente, mas quando temos a oportunidade de conversar com a família nós explicamos que o luto passa por algumas fases, sendo a primeira delas, a da negação”.

Acompanhando o raciocínio dela, Marcelo explica que, durante a pandemia, os agentes funerários deslocavam até o hospital para fazer a liberação do corpo com toda a parte de proteção que era exigida. “Nem nós víamos o corpo; ele já estava dentro de uma embalagem lacrada e com zíper e nós não tínhamos acesso. Só colocávamos dentro da urna mortuária (caixão)”, disse.

O último transporte

Marcelo Juchem de Oliveira

Para casos de óbitos que tenham confirmação ou suspeita da Covid-19 as funerárias adotam medidas para a prevenção de contágio. De acordo com Andréia a funerária de União da Vitória ainda segue as orientações vindas do Ministério da Saúde e do Trabalho, conforme comunicado Nº 19/2020, que trata do manejo de corpos.

Além disso, as funerárias também adotam os protocolos e decretos municipais. “O translado deve acontecer em uma urna específica e lavável, a qual chamamos de urna de remoção e o carro passa por uma adaptação, porém precisa ser lavável e higienizável. Quando se trata de um translado, que foi a óbito por Covid, é necessária a total higinenização do mesmo para o próximo transporte. Só lembrando que para a realização do translado é necessário dispor da assinatura do médico na declaração de óbito ou o óbito já estar registrado. Do contrário, o corpo não pode ser liberado”, acrescenta.

O setor funerário é fiscalizado e segue as normas rígidas da Vigilância Sanitária, cujo lixo produzido em laboratório é recolhido por uma empresa específica e descartado como lixo hospitalar.

Segundo Andréia, no pico dos casos da pandemia, a família enlutada poderia optar por realizar uma breve despedida (muitas vezes, de no máximo uma hora, conforme decreto da prefeitura, junto ao local do sepultamento), porém desde que o espaço fosse ao ar livre ou muito ventilado, não sendo permitida a presença de mais de dez pessoas. Também eram observadas as regras de distanciamento social e uso de máscaras por todos, vedada a presença de pessoas sintomáticas ou assintomáticas com confirmação de estarem contaminadas pelo coronavírus. A urna mortuária deveria ser fechada pela funerária não podendo mais ser aberta. No atendimento ao óbito, até a realização do sepultamento ou cremação, prevaleceu a agilidade, visando minimizar o tempo entre a declaração do óbito e o sepultamento.

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Segundo Marcelo os colaboradores do setor funerário e envolvidos no trabalho para o sepultamento deverão sempre estar com os equipamentos de proteção individual indicados pelo Ministério da Saúde, conforme o manual de manejo de corpos no contexto do coronavírus, sempre utilizando macacão com capuz, avental, luvas, máscaras e óculos de proteção descartáveis. Também são utilizadas águas sanitárias para higienização das urnas, seguido da acomodação da mesma no veículo de transporte.

A funerária de União da Vitória adotou sensibilidade e a empatia para auxiliar as pessoas a vivenciarem o luto. “Hoje contamos com atendimento psicológico para os enlutados. Orientamos as famílias a procurarem a ajuda de um profissional”.


O cuidado presente diante da vida ausente

Cláudia Millena Coutinho Câmara, na sua tese de mestrado para o Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pesquisou em 2011 sobre “Os agentes funerários e a morte: o cuidado presente diante da vida ausente”. Segundo ela, a atualidade é marcada pela arte de fugir da morte e os cuidados com o corpo morto atribuídos a terceiros, por meio de serviços que configuram o mercado funerário. A pesquisadora cita os agentes funerários como os profissionais que lidam com o corpo morto, com a dor dos familiares e suas reações. “Pesada rotina de trabalho […] no entanto, diante do reconhecimento e agradecimento das famílias os agentes encontram sentido e beleza no ofício de cuidar do corpo morto”, pontuou.

Cláudia Millena defende o reconhecimento do agente funerário como um profissional de cuidado, pela forma como exerce zelo com o morto e seus familiares. Para a pesquisadora a morte, como tema, já encantou e encanta muitos, sendo uma inspiração para a arte, para a música, para a filosofia e a ciência, na busca em combatê-la.

“Pensar na morte, ou melhor, na vida pela ótica da morte, foi uma realidade que me invadiu já na graduação, quando tive contato com a disciplina de psicologia da morte. Fui amadurecendo diante das questões vivenciadas na especialização em Psicologia Hospitalar, as quais me levaram a buscar mais conhecimento sobre o processo de luto, realizando um aprimoramento sobre a psicoterapia do luto. […] O trabalho se ampliou e se estendeu aos profissionais que trabalhavam nesse contexto, abarcando agentes funerários, sepultados, atendentes funerários, auxiliares de serviços gerais e vendedores de planos funerários. Como os profissionais funerários lidam com a morte? Estar ao lado dos profissionais do fazer funerário e do cemitério possibilitou uma reflexão sobre a minha própria visão e o valor atribuído ao ofício desses profissionais”.

Conforme relato da pesquisadora em sua tese, são poucas as literaturas sobre o tema. “O agente funerário é um profissional que traz à tona sentimentos ambivalentes, pois estampa a realidade e a concretude da morte, que é tão difícil de ser aceita e executa um fazer necessário e essencial para o ritual da despedida. Dessa forma, se depara não apenas com as dificuldades referentes ao contato com o corpo morto, mas com as reações dos clientes, as quais são tão imprevisíveis que os casos que são chamados a atender”, relata.

A opinião de Marcelo vem ao encontro de Cláudia Millena. “O papel da equipe funerária a serviço da comunidade é grandioso; principalmente na parte do atendimento, pois eu sempre digo à minha equipe que nós não vendemos urnas, mas sim vendemos o serviço, pois se fosse para vender apenas o caixão as pessoas viriam até aqui, os colocavam em um veículo e levavam. O serviço especializado vai além, é o acolhimento da família, é cuidar bem do ente querido e prepará-lo. A visão daquela pessoa pela última vez ficará para sempre”.

Segundo ele, o serviço de translado funerário necessita estar de acordo com a lei e, para isso, cada estado possui o seu sindicato ou o seu órgão regulador. A funerária de União da Vitória não está filiada a nenhum sindicato, porém, as informações e dúvidas são direcionadas às centrais de luto hoje presentes nas capitais. Para Marcelo seria interessante que União da Vitória também contasse com uma central. “Hoje os dados sobre o números e causas da morte são buscadas junto aos hospitais. Quando acontece o óbito fora da nossa cidade nós ligamos imediatamente para o hospital e perguntamos se existe uma central de luto. Caso não possuam, a liberação do corpo acontece diretamente no hospital. Na contramão da ausência de uma central de luto, temos a Vigilância Sanitária que é atuante e realiza visitas técnicas anuais, em especial no laboratório da funerária”, afirma.

Compartilha a sócia de Marcelo que é de responsabilidade dos municípios a criação de leis para o transporte e a retirada dos corpos nas centrais de luto. “Até pouco tempo a capital de Santa Catarina, Florianópolis não liberava a Saída do corpo sem fazer a tanatopraxia (procedimento de conservação do corpo após o seu falecimento), assim como a cidade de Porto Alegre. Por conta disso, as famílias acabam aguardando um tempo a mais para a retirada do corpo do seu ente querido. Já em Curitiba (PR), por conta da presença de uma central de luto toda a documentação das funerárias precisam estar rigorosamente cadastradas e com os veículos dentro da lei, além de cadastro de seus funcionários. Precisa estar tudo em dia, como a licença sanitária e alvará de funcionamento. Caso não esteja, não é permitido a retirada do corpo. Precisamos estar sempre atualizados e saber o que está mudando na legislação”, disse Andréia.

A funerária de União da Vitória também participa de processos de licitação junto as prefeituras e atualmente atende as cidades de União da Vitória, Porto União e Bituruna. “Neste caso atendemos as famílias que não tem condições para pagar um funeral. É realizada uma entrevista com a assistente social do município e, assim que é autorizado, nós realizamos o atendimento e o translado, sendo os custos por conta da administração”, lembra.


Aprendizado de Gerações

Não é de hoje que Marcelo Juchem de Oliveira tem as informações sobre o mercado funerário na ponta da língua. O serviço lhe foi apresentado ainda na infância. Os avós, pais e demais familiares são proprietários de uma funerária em São Luiz Gonzaga, no Rio Grande do Sul. “Eu sempre estive envolvido com o setor, desde menino”. O tempo passou e o garoto cresceu. Em 2013, Marcelo teve aoportunidade de empreender em União da Vitória. Segundo ele, depois que começou a trabalhar no segmento funerário aprendeu várias lições, principalmente sobre a maneira como enxergava a morte.

Na sua empreitada de vida, Marcelo nunca esteve só; ele sempre contou com o apoio de Andréia, sua esposa. Porém, ela tinha resistência em falar a morte. Andréia é fisioterapeuta de formação e sempre repetiu para Marcelo que trabalhava pela vida e não pela morte. O esposo na defesa, da sua profissão, compartilhou com ela sobre a importância do papel do agente funerário perante à sociedade. Disse à ela que os familiares necessitam de uma despedida do seu ente querido de maneira apropriada e ética.

Conta ele que a esposa percebeu que o atendimento humanizado faz toda a diferença para um momento tão doloroso e difícil. Desde então, Marcelo e Andréia firmaram sociedade na Santa Rita Serviços Funerários em União da Vitória, sendo que em 2017, a empresa expandiu atendimento com filiais nas cidades vizinhas de General Carneiro e Bituruna. Em 2019 o serviço passou a contar com um velatório na cidade catarinense de Porto União.

Além de diretor de funerária, Marcelo é também agente funerário, cuja função consiste na remoção e preparação dos corpos; ornamentação de salas de velório; condução de sepultamentos; auxílio nos serviços administrativos; acolhimento de familiares e acompanhamento de registros de óbitos e demais documentos necessários. Também exerce a função de motorista funerário. Já Andréia é responsável pelo cerimonial de luto.

Diretores Funerários

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