Fardados também adoecem

A história que segue poderia ter tido um desfecho totalmente diferente. Ana Júlia* hoje tem 36 anos de idade. Entre uma conversa e outra na festa de aniversário de sua filha caçula, ela se emocionou ao falar que o seu avô poderia não estar ali, compartilhando deste momento. Ele sempre foi um escudo para família. O PM aposentado tem muita história para contar ao longo de seus oitenta e poucos anos.

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Seu Pereira*, sempre chamado pelo nome de guerra, sofreu de depressão por mais de uma década, até o seu diagnóstico. Ele acreditava se tratar de uma melancolia [o transtorno sempre existiu, porém antigamente era tabu].

O homem desde menino foi cercado por familiares que atuavam na segurança pública, sendo um tio do exército, outro da polícia militar e outro na função de delegado de uma cidade do interior de Santa Catarina. Quando Pereira assumiu na Polícia Militar do Paraná era um jovem cheio de sonhos e de coragem. Queria fazer a diferença na sua profissão, assim como tantos outros que os inspiravam. O soldado na época teve passagens pelos quartéis da região de União da Vitória, cidade distante 230 quilômetros da capital Curitiba.

Ana Júlia cogitou até escrever um livro para compartilhar a história do avô para que outras pessoas procurem auxílio médico ou compartilhem com alguém quando não estiverem se sentindo bem. Pereira guardou a sua dor a sete chaves. Por muitos anos sofreu calado. O sofrimento mental foi lhe consumindo aos poucos. Contou ele à família que um colega de trabalho percebeu que as coisas não estavam bem. Seu Pereira não era mais o mesmo. Deixou de se divertir, visitar familiares e amigos. Sua face se fechou.

Segundo a neta por diversas vezes o avô cogitou tirar a própria vida. Até a aposentadoria, ele oscilou sua rotina de trabalho entre rondas nas vias públicas e o administrativo. A frustração começou a partir do momento em que se sentiu impotente quando vidas foram perdidas em assaltos, arrombamentos e agressões nas ruas. Dizia que deveria estar lá, antecipadamente para evitar o ocorrido. Era impossível. Para ele a função “policial militar”  está entre as mais perigosas no mundo e ele fazia parte deste movimento; perigo para ele e para os para outros.

Foi então que o colega de Pereira o incentivou a buscar ajuda. Foi ao médico e fez terapias. Foram mais de 365 dias entre recaídas e melhoras.

Seu Pereira conseguiu se aposentar na função que desde menino fazia parte da sua vida – e que ainda faz. Ele garante que ao passar por outros colegas de profissão repara em seus rostos. Diz que não há necessidade de estarem sempre sorrindo, até porque a profissão requer uma neutralidade em seus sentimentos, mas saber sobre como eles (os policiais) estão se sentindo fisicamente e mentalmente fará toda a diferença: para suas famílias, sociedade, corporação e para si próprios.

Não fosse o colega de trabalho, Seu Pereira poderia não estar nos relatando a sua recuperação. Poderia ter encerrado um ciclo sem ao menos ter tentado. E ele tentou!

*Os nomes foram modificados para preservação das identidades das fontes.

Narrativas como a do seu *Pereira comprovam que os fardados também adoecem. Mulheres e homens treinados para conterem suas próprias dores têm se afastado para tratamento e terapias visando a saúde mental. Situação implica no fortalecimento às redes de apoio em diversas cidades brasileiras.

Ricardo Pacheco, gestor em saúde, médico do trabalho, empresário e atual presidente da Associação Brasileira de Empresas de Saúde e Segurança do Trabalho (Abresst), acrescenta que a segurança pública brasileira é um assunto delicado. “Em 2020, durante o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foi divulgado que em 2019, foram 65 militares e 26 policiais civis que cometeram suícidio. No mesmo ano, o número de policiais mortos em serviço foi de 56 e de 16 civis. Os dados mostram que desde 2019 eles (os policiais) estão morrendo muito mais por suicídio do que no serviço propriamente dito. Investimentos na polícia não podem ser meramente materiais, ou seja, se você está com sua arma defasada você recebe uma nova, porém nós estamos falando em investimento humano. O PM deve ser visto como sendo um trabalhador em favor de uma sociedade justa”, diz.

Em recente entrevista à CBN Vale do Iguaçu, Ricardo contou que iniciou a sua carreira voltada à saúde ocupacional quando compreendeu que como médico do trabalho possuía o papel determinante na prevenção de diversas doenças, e não apenas as que incidem no ambiente laboral. Assim, expandiu seus horizontes e se dedicou a prover saúde para a população em geral. Com esse objetivo, fundou em 2001 a MGP Saúde, plataforma de solução integrada que oferece assessoria e consultoria para empresas e para qualquer cidadão. “Os temas saúde mental e suicídio merecem atenção no Brasil”, afirma.

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Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, registram 93 suicídios de policiais civis e militares em 2018 e 91 em 2019. A taxa foi de 17,4 por 100 mil policiais, quase o triplo da verificada entre a população em geral, que ficou em seis por 100 mil habitantes em 2019.

De acordo com os dados, no mesmo ano, morreram mais policiais por suicídio do que no confronto em serviço. “O cotidiano do PM que trabalha na rua [principalmente] não é fácil emocionalmente falando. Enxergamos a atuação do policial quando mostrada pela mídia, ora sendo um policial herói, ora algozes, e outras vezes, até como sendo protagonistas de tristes episódios de desequilíbrio emocional. Policiais em surto são a personificação do risco que ele tem para si mesmo e para os próximos. Os policiais não são avatares ou máquinas; são indivíduos duplamente atingidos pela violência como os cidadãos. A atividade profissional já os expõe a inúmeras situações que podem gerar sofrimentos psíquicos e, essa questão geralmente é negligenciada pelo poder público e até pela população, a qual deveria ser protegida”, acrescenta.

De acordo com o especialista a prevenção de problemas de saúde mental entre os profissionais de segurança pública também virá com a valorização cotidiana das carreiras, como remuneração, equipamentos e infraestrutura de trabalho.

Quem compartilha da mesma opinião de Ricardo é o 2º Sargento PM, Nilton César Facenda, também presidente da Associação de Praças do Estado de Santa Catarina (Aprasc).

Segundo Nilton durante os 21 anos de atuação da entidade o intuito é a representatividade aos profissionais da Segurança Pública. “A Aprasc luta pelos direitos dos praças – policiais e bombeiros militares – de Santa Catarina. É considerada a maior associação de profissionais de uma única categoria no Brasil, com mais de 14 mil associados. Fundada em 25 de agosto de 2001 obtém grandes conquistas e avanços que são sentidos no cotidiano dos praças e das instituições militares, com reflexos diretos na sociedade. A entidade atua em duas principais frentes para defender os direitos dos praças: político-institucional e assessoria jurídica. Estamos abrindo convênios para que as cidades catarinenses venham, em sua totalidade, em um futuro próximo, contar com clínicas odontológicas; atualmente contamos com mais de dez cidades e, até o final do mês de agosto, o intuito é passar de 40 cidades conveniadas. Também pretendemos expandir o convênio para farmácias e demais entidades relacionadas à saúde e o bem-estar dos profissionais. A meta da nossa gestão é contar com uma fundação para cuidar e dar mais condições aos sócios da ativa e da reserva, tendo a saúde como foco”, pontua.

2º Sargento PM, Nilton César Facenda

Nilton acredita que a pressão colocada sobre os profissionais de segurança em diversas cidades brasileiras é a principal causa de desestabilização mental dentro das corporações. “A entidade está atenta nas mais diversas situações sobre tudo o que o que afeta os policiais e bombeiros. Concordo que o policial e o bombeiro não são máquinas; são sim, seres humanos”.

O Tenente Coronel da reserva da Polícia Militar do Paraná, Gilberto Oiti Oliveira Junior, falou que dos grandes desafios que o Brasil enfrenta atualmente a segurança pública é a mais preocupante.

Ele foi comandante da Companhia Independente de Polícia Militar Heróis do Contestado de União da Vitória (2011 e 2013). “A falta de efetivo em mais de 150 municípios do Estado é fato. A reposição de pessoal deve acontecer de forma automática evitando que o problema se torne crônico porque os demais policiais estão se sobrecarregando e adoecendo. São inúmeros casos de depressão, alcoolismo e suicídio nos quadros da corporação”.

Gilberto concluiu seus 32 anos de carreira militar e acredita em projetos de preparação do policial militar para a reserva remunerada, trabalhando especialmente o lado psicológico do policial, sendo uma preparação à sua reinserção à sociedade.

Seguindo este viés, a pesquisadora Patricia Constantino, responsável pelo estudo Saúde mental dos agentes de segurança pública, do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli, da Fundação Oswaldo Cruz (RJ), afirma que os policiais relataram profundo sofrimento psíquico, tristeza, sentimento de inutilidade. “Muitos confessaram que usam drogas lícitas e às vezes ilícitas. Os policiais se sentem constrangidos em admitir isso. Muitas vezes o médico que o atende é de patente superior, então ele não vê ali o médico, vê o oficial”, acrescenta.

Para a delegada de Polícia Federal, Tatiane Almeida, mestre em Sociologia pelo Instituto Universitário de Lisboa, o policial tem dificuldade em revelar emoções e fragilidades, “pois constrói a sua identidade em torno da imagem de força e coragem, inclusive no ambiente familiar e social”.


Prevenção ao suicídio no programa Pró-Vida

O Plenário do Senado aprovou no dia 06 de abril de 2021 o projeto de lei que inclui ações voltadas para a promoção da saúde mental e prevenção ao suicídio no Programa Pró-Vida, voltado para profissionais de segurança pública. O projeto 4.815/2019 foi aprovado com votação unânime e segue para a análise da Câmara dos Deputados.

O Programa Nacional de Qualidade de Vida para Profissionais de Segurança Pública (Pró-Vida) foi criado pela Lei 13.675, de 2018, que disciplina políticas públicas nacionais para o setor. O objetivo do programa é oferecer atenção psicossocial e de saúde no trabalho aos profissionais de segurança pública.

O projeto inclui na lei ações para promoção da saúde mental, cuja execução deverá ser pactuada entre União, estados e municípios, e combate a discriminações e preconceitos. Também determina que o Pró-Vida publique anualmente dados sobre transtornos mentais e suicídio entre profissionais de segurança. O programa também passará a oferecer acompanhamento a familiares.

No estado do Paraná, em novembro de 2021, durante a sessão ordinária realizada na Assembleia Legislativa do Paraná (Alep), alguns deputados estaduais externaram a preocupação diante do grave cenário psicológico que tem tirado a vida dos profissionais de segurança pública.

Ressaltaram que os alertas sobre a saúde mental dos policiais estão sendo divulgados há muito tempo e que uma audiência pública aconteceu na Alep, em novembro de 2019, para discutir o tema.

No mesmo ano, a Major Cristina Muzeka, que atuou durante anos como Chefe do Centro Terapêutico da PM-PR, afirmou grande número de sofrimento entre os profissionais. “O que não sai na fala, às vezes sai na bala, contra si mesmo, o suicídio, ou um ato de violência maior do que o necessário para a comunidade”.


Serviço de Assistência Social da Polícia Militar do Paraná

O Serviço de Assistência Social (SAS) da Diretoria de Pessoal da PM (DP) foi criado em 2016 com o intuito de atendimento aos policiais e bombeiros militares do Paraná em momentos de dificuldades emocionais. Todas as atividades exercidas pelos integrantes do Plantão Psicossocial são baseadas nos Primeiros Cuidados Psicológicos, também difundida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e estão disponíveis 24 horas por dia.

O trabalho é feito por policiais militares formados na área de psicologia, serviço social e teologia e, é voltado para o policial e o bombeiro militar – da ativa e para o veterano – assim como para os dependentes.

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Vale lembrar que em 2021, também aconteceu a apresentação do programa-piloto PositivaMente. Desenvolvido pelo Centro de Psicologia Positiva e Mindfulness do Paraná (CPPMP) será possível prover o incremento da qualidade de vida e suporte à saúde mental aos policiais federais.

O programa-piloto contou com o envolvimento de 13 profissionais e registrou um índice de 100% de remissão de sintomas de ideação suicida, além da redução de 69% dos sintomas de depressão e 47% de redução nos sintomas de ansiedade após o conjunto de intervenção. Segundo informações do portal da CPPMP, foi um resultado importante alcançado em um tempo relativamente curto.

A psicóloga e diretora do CPPMP, Sheila Drumond Leite, explicou que o projeto contou com três fases, sendo o primeiro um levantamento do estado de saúde mental e necessidades específicas do grupo de participantes. A segunda etapa contou com um projeto de intervenção de oito semanas em que foi ensinado como as virtudes mapeadas individualmente funcionam como amortecedores emocionais para tempos de adversidade. Por fim, a terceira fase se deu como um nova aplicação de testes para que fossem levantados os resultados alcançados considerados bastante satisfatórios.


Triste realidade 

Em 2016 uma notícia entristeceu os moradores do Meio-Oeste de Santa Catarina. Naquela ocasião, o recém nomeado comandante da Polícia Militar de Caçador foi encontrado morto, com um tiro na cabeça, em um dos quartos do alojamento de oficiais no 15º Batalhão. No local havia uma uma pistola .40 ao lado do corpo do militar. A família dele era de Lages (SC). Na época a Polícia Civil abriu um inquérito policial para apurar os fatos.

Ainda, conforme divulgou o Portal G1, em 15 de julho deste ano, duas cidades do Paraná foram cenário de uma tragédia: um policial militar matou oito pessoas e se suicidou. As mortes foram em Toledo e Céu Azul. O soldado de 37 anos assassinou a mulher, os três filhos, um irmão e outras duas pessoas. Ele estava na PM há 12 anos, sem nenhum registro de problemas psicológicos. A Secretaria de Segurança Pública do Estado afirmou estar prestando apoio às famílias.


“Admitir que não está bem é sinal de bravura”

Disse Ricardo Pacheco, médico, gestor em saúde e presidente da Associação Brasileira de Empresas de Saúde e Segurança no Trabalho (Abresst).

Ricardo Pacheco, médico, gestor em saúde e presidente da Associação Brasileira de Empresas de Saúde e Segurança no Trabalho (Abresst).

Confira um trecho da entrevista

Jornal O Comércio (JOC): Quais estratégias devem ser consideradas à prevenção do adoecimento de profissionais da segurança pública?

Ricardo Pacheco (RP): Existem vários protocolos, porém o que enxergamos hoje é uma ineficácia deles em relação a saúde mental dos policiais e que precisam acontecer em vários níveis, sendo o primeiro o processo seletivo, pois em alguns países do mundo o processo é desenhado para identificar os problemas relacionados ao comportamento do profissional, bem como a falta de auto-controle, hábitos que chamamos de perniciosos, como drogas e álcool; no Brasil o profissisional passa por atendimento de psicólogos. Como exemplo no Canadá o movimento de o policial tirar a arma da cintura já faz parte de uma análise psicológica dele; se atirar ele será afastado. Depois este profissional irá passar por todo um processo novamente até que tenha uma nova aptidão. […] programas institucionais como Ação de Saúde Integral e Integrada devem ser prioridades na sociedade.

JOC: Qual o impacto da pandemia na saúde mental dos profissionais de segurança pública?

RP: O impacto foi de 100%. De uma hora para outra tivemos que voltar para dentro de nossas casas por conta do lockdown. Nesse período observamos em algumas cidades cenas degradantes, como por exemplo, pessoas entrando e invadindo supermercados, falta de emprego e assim por diante. Quem é que estava lá para defender a sociedade? Os policias!

JOC: O policial que trabalha fora do destacamento (rua) tem mais problema de saúde?

RP: Quem nasce para ser policial, nasce para ser policial. É um dom. De maneira geral tanto o policial de dentro do quartel, quanto o policial de rua, sofrem diariamente com as questões psicosociais.

JOC: Existe preconceito sobre o tema dentro das corporações?

RP: O policial em situação de adoecimento mental tem medo de perder a sua arma e ela ser recolida e, com isso, serem descriminados pelos próprios colegas de trabalho. Isso dificulta a procura de ajuda médica. Afirmo que existem profissionais excelentes dentro da polícia, porém a sistematologia é falha ou ineficiente. A profissão carrega uma cultura organizacional que é marcada por um ideal de invencibilidade, de estereótipos de masculinidade tóxica, ou seja, uma mentalidade de que a missão do policial deve ser feita a qualquer momento, a qualquer custo e geralmente as condições de trabalho não são tão satisfatórias.

JOC: Quais orientações aos profissionais que não estão bem de saúde?

RP: Durante o Setembro Amarelo falamos sobre a conscientização e a prevenção de casos de suicídio. Diria que as pessoas precisam observar o seu colega de trabalho, se ele está mais triste, sem vontade de se alimentar, ou estar junto de seus familiares e amigos; ainda se esta exagerando no consumo de álcool, ele precisa buscar ajuda imediata, ele querendo ou não. Nós também precisamos de um fator muito sério no levantamento qualitativo e quantitativo de pacientes que possam ter possíveis alterações coligadas à questão da saúde mental, como entender o motivo do afastamento daquele policial, pois tudo deve ser levado em conta. Estamos falando de um assunto muito sério que coloca em cheque o atendimento da população de uma determinada comunidade. O acesso a informação e ao serviço médico multidisciplinar é o maior desafio na medicina.

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