Histórias da grande enchente de 1983 no Vale do Iguaçu

Era noite de sexta-feira quando Airton Maltauro Filho deixou a redação da revista Gazeta Informativa na companhia de seu amigo Gilberto Abrão, editor do informativo que circulava quinzenalmente no Vale do Iguaçu. Ambos andaram poucos metros e foram jantar no restaurante do antigo Holz Hotel para espairecer e dar início ao final de semana.

Histórias da grande enchente de 1983 no Vale do Iguaçu

A chuva não dava trégua naquele início de julho de 1983. Alguns bairros já estavam tomados pela água do Iguaçu. O fato não era inédito. Meses antes, em abril, União da Vitória e Porto União já haviam registrado uma cheia. O comportamento do rio naquela sexta-feira, ao que muitos acreditavam, parecia repetir o padrão.

Airton, após o jantar, despediu-se do amigo e foi para casa descansar. O sono, contudo, não foi longo. Nas primeiras horas da madrugada do dia 9, o homem foi despertado por altos toques de sirenes e pelo apito do trem. Os sons eram alertas da Defesa Civil sobre a situação de calamidade que havia se instalado na cidade.

Histórias da grande enchente de 1983 no Vale do Iguaçu

Airton Maltauro Filho. Foto: Jornal O Comércio

Não demorou muito para que Airton fosse surpreendido por outro som, desta vez vindo do telefone. “Nego. Nego. Por favor, venha aqui em casa. Estou com água aqui. Vou perder tudo”, clamava Gilberto do outro lado da linha. A queixa do amigo parecia improvável. Mas quando Airton chegou na casa de Gilberto, localizada na rua Paraná, na área central de União da Vitória, encontrou o imóvel completamente tomado pela água. A situação no restante da vizinhança era a mesma.

Airton passou o sábado inteiro dividido entre duas funções: ajudar amigos a salvar o que pudesse ser salvo e registrar em fotos a catástrofe. Informar a população pelo rádio, como fazia todos os dias, não era mais uma opção. O Iguaçu tomara completamente o parque técnico da Educadora, da Colméia e da União, as três emissoras presentes no Vale do Iguaçu naquela época.

União da Vitória e Porto União estavam incomunicáveis. Os telefones que funcionavam o faziam precariamente. Não havia fornecimento de luz. Não havia fornecimento de água. Não parava de chover, e desde o dia 8 chovia cada vez mais. “Durante uma semana chovia incessantemente. Era monótono”, relembra Airton.


A marca assustadora

Durante o mês de julho de 1983, 800 milímetros de água caíram sobre o Vale do Iguaçu. A expectativa para o período, segundo a Defesa Civil do Paraná, era de 138mm. O que se presenciou naquele ano foi um verdadeiro dilúvio. O rio, que em média mede 2,5m, alcançou no dia 18, a assustadora marca de 10,42m. Nunca o Iguaçu havia atingido um nível tão alto. Até hoje aquele foi seu maior pico. Estima-se que cerca de 75% do perímetro urbano de União da Vitória tenha ficado submerso. Em Porto União, a área mais atingida foi a do bairro Santa Rosa, o mais populoso do município.

Airton comenta que, dias antes da enchente, começou-se a se falar sobre o El Niño, evento climático até então pouco conhecido da população. De fato, 1983 registrou um dos El Niños mais extremos da história. O fenômeno, que causa o aquecimento das águas do Oceano Pacífico, foi responsável por uma seca que atingiu 85% da área do nordeste brasileiro. Em contrapartida, a região sul foi castigada por chuvas torrenciais.

Ainda de acordo com a Defesa Civil do Paraná, mais de 60 mil pessoas ficaram desabrigadas no Vale do Iguaçu por conta da enchente. Contudo, mesmo aqueles que não precisaram deixar sua casa foram afetados, visto que faltavam alimentos nas duas cidades. Os mercados estavam desabastecidos. As entradas e saídas de União da Vitória e Porto União ficaram inacessíveis. A ajuda vinha apenas de aeronave.

Mais de 60 cozinhas comunitárias foram montadas para alimentar o Vale do Iguaçu. Escolas, pavilhões de igrejas e qualquer outro espaço com condições era utilizado para abrigar as vítimas do desastre.


Os que conseguiram fugir e aquele que escolheu ficar

Já chovia incessantemente quando Cecília Lodi Castaldon foi até a Casa de Saúde Nazaréth Farah para dar à luz a sua filha, no dia 6 de julho. Quando recebeu alta no sábado, 9, já não tinha para onde voltar. Sua casa, localizada na rua Joaquim Távora, no bairro São Bernardo, estava abaixo de 1,6m de água. Permanecer no hospital não era uma opção pois já havia falta de suprimentos. A solução foi buscar abrigo na casa de um tio.

Natural de Bituruna, a enfermeira veio para União da Vitória poucos anos antes para acompanhar seu marido, José Castaldon, que havia sido transferido para a cidade pela empresa em que trabalhava. Sem conseguir comunicação com os parentes durante os primeiros dias da enchente, a apreensão de Cecília e de seus familiares apenas aumentava.

José e Cecília Castaldon. Foto: Jornal O Comércio

Quase duas semanas depois do nascimento da filha, algumas estradas puderam ser liberadas para a passagem de veículos. Cecília decidiu ir para Bituruna com a bebê. Uma viagem que, normalmente, dura pouco mais de uma hora, naquele momento levou cerca de sete horas para ser completada. Cecília chegou na casa de sua irmã por volta das 10h da noite, levando apenas algumas roupas e o alívio de ter terra firme ao invés de água sob seus pés. “Quando estava aqui [em União da Vitória] parecia que eu estava no inferno. Quando cheguei lá [em Bituruna] me senti no céu”, recorda.

José permaneceu em União da Vitória para tentar salvar alguns dos pertences do casal. Da casa, que ficou 22 dias submersa, foram resgatadas uma cômoda e uma pia, que estão até hoje na família.

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Histórias da grande enchente de 1983 no Vale do Iguaçu

Rosane Margarete Rodrigues da Silva também ficou desalojada durante a enchente, sendo abrigada por uma amiga. Com familiares em Curitiba, viajar para a capital parecia uma realidade muito distante. Mas, durante uma noite, o marido de Rosane apareceu com um plano.

O casal ficou sabendo sobre o transporte de vítimas por helicópteros da Força Aérea Brasileira (FAB). Essa era a chance de Rosane escapar da catástrofe. Na manhã seguinte, a mulher, acompanhada do filho de 7 anos e da filha, de 3, foram até o estádio do Clube Ferroviário na tentativa de conseguir uma vaga em uma das aeronaves.

Rosane ficou durante horas sentada na arquibancada com os filhos aguardando ser chamada. Já era praticamente noite e a aflição crescia. Cansada de esperar, a mulher decidiu se aproximar do alambrado. Foi nessa hora que Rosane percebeu que os militares escolhiam a dedo as pessoas que poderiam embarcar. E havia um padrão: mulheres com crianças de colo e pouca bagagem. Era exatamente o caso de Rosane.

Rosane Margarete Rodrigues da Silva. Foto: Jornal O Comércio

Com os dois filhos em seu colo, a mulher foi abrindo passagem pela multidão e se aproximou ainda mais do alambrado. “Venha”, disse um militar olhando diretamente para Rosane, que obedeceu o chamado. Cerca de 36 adultos, acompanhados de crianças, partiram naquela aeronave. “Foi um voo tão rápido que quando me dei conta já estávamos no aeroporto em Curitiba”, comenta.

Ao desembarcar, as vítimas da enchente foram imediatamente abordadas por repórteres interessados em saber como estava a situação no Vale do Iguaçu. Os militares conduziram os passageiros para longe do tumulto e logo Rosane encontrou seus familiares, que já estavam à sua espera. “Estava muito cansada e nervosa, mas muito feliz por ter sido escolhida. Acho que naquele momento em que eu decidi descer da arquibancada e enfrentar aquela fila, aquele tumulto de pessoas, eu acho que ali eu decidi que eu precisava sair daquela situação”, afirma Rosane.

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Adir Zandoná em sua casa, o barco que recusou a abandonar. Foto: acervo

Dentre tantas histórias de pessoas que precisaram sair de casa, talvez uma das mais emblemáticas, contudo, seja justamente a de um homem que optou por permanecer. Adir Zandoná é, até hoje, anos após sua morte, um nome conhecido no Vale do Iguaçu. Naquele julho de 1983 fazia poucos dias que o médico havia finalizado a construção da sua casa dos sonhos.

Quando a enchente assolou as cidades, Adir lutava contra dramas pessoais. Segundo a revista Gazeta Informativa daquele mês, o filho mais velho do médico havia sofrido um grave acidente, precisando ficar internado em Curitiba, correndo o risco de ter uma perna amputada. Não bastasse a preocupação com o primogênito, na semana anterior ao início da inundação, até então a esposa de Adir optou por sair de casa levando os dois filhos do casal, deixando o médico na companhia apenas do cachorro Guara, seu fiel escudeiro.

Entre tantos problemas, a enchente parecia ser apenas mais um inconveniente. Percebendo que a água, muito provavelmente, invadiria sua residência, Adir saiu de seu consultório, passou no supermercado para comprar alimentos, e voltou para a casa que, dias depois, seria apelidada de “barco da solidão”.

“Eu me dei inteiro. Fiz desta casa e de minha família um pedaço de mim. Como sair daqui agora?”, perguntou Adir a um repórter da Gazeta Informativa. Isolado, o médico permaneceu refugiado no pequeno espaço de sua casa que não havia sido tomado pelo alagamento. A água chegou até o segundo piso do imóvel de dois andares.

Sendo o comandante daquele barco, Adir deixava claro em um cartaz colocado na sacada de casa que seria o último a abandonar o navio. Quando os suprimentos que haviam sido comprados pelo médico acabaram, amigos iam até o imóvel, em botes, para levar água e alimentos para Adir.

Quando a água finalmente baixou, o médico reconstruiu a casa e sua vida. “Ele sempre foi um homem forte, um homem decidido e de bem com a vida. Ele reconstruiu tudo”, conta Sirlei Zandoná, viúva de Adir.

Após passar por mais uma enchente naquela casa, dessa vez em 1992, Adir optou por vender o imóvel e mudar para o bairro São Cristóvão, onde Sirlei possuía residência. E por lá ele permaneceu, até sua morte. “É triste lembrar de tudo aquilo, mas a gente conseguiu superar”, completa Sirlei.

Sirlei Zandoná. Foto: Jornal O Comércio


O retorno ao lar

Paulo Henrique Perotti soube durante toda sua infância e adolescência sobre as cheias do Iguaçu. Seu pai também já estava acostumado com o rio aumentando de leito. Em 1983, quando a água apontou na esquina de casa, o pai do contador não acreditou que a água fosse chegar até o imóvel, visto que na cheia de 1957, a maior até então, o local não foi atingido. Infelizmente, o homem estava errado. A casa ficou sob 2m de água durante o pico da cheia.

“Foi uma experiência que eu não quero para ninguém. Até hoje eu ainda sinto o cheiro daquela água suja”, relembra Paulo. Quando saíram para buscar abrigo na casa de sua avó, por volta das 8h da noite do dia 8 de julho, a água já batia na cintura dos moradores. Poucas coisas puderam ser salvas, como roupas e talheres. Eletrodomésticos e móveis foram completamente perdidos.

Histórias da grande enchente de 1983 no Vale do Iguaçu

Paulo Henrique Perotti. Foto: Jornal O Comércio

Paulo, que na época tinha 15 anos, assim como muitos jovens naquela situação via nos helicópteros que chegavam ao Vale do Iguaçu uma das poucas diversões disponíveis. “Era uma coisa que a gente nunca tinha visto na vida”.

Quando voltaram para casa, 40 dias após terem saído de lá, a encontraram destruída. “O mais difícil é você ver tudo o que você tem perdido. O pouco que você tenha mas é teu, é do teu aconchego, do teu dia a dia. E aí você entra e vê que está tudo perdido, está tudo dentro da água. Ver que vai virar tudo lixo”, conta. Foram meses limpando e reconstruindo o imóvel. “A gente lavou, pintou, arrumou e voltou a morar lá”, completa.

Hoje, 40 anos após a tragédia, Paulo diz não sentir raiva do rio, e confessa que nunca pensou em ir embora por causa das enchentes. Para ele, toda cidade está sujeita a desastres naturais, sejam ressacas no litoral, secas, nevascas, ventanias, ou a chuva. “A natureza está aí. Cabe a nós nos adaptarmos a ela”.

Histórias da grande enchente de 1983 no Vale do Iguaçu


Salvando o que era importante ser salvo

Luis Carlos da Silva veio de Curitiba para União da Vitória quando era um bebê. As cheias do Iguaçu sempre fizeram parte de sua vida, mas nunca comparadas àquela vivida em 1983. Funcionário público do Departamento de Estradas de Rodagem (DER), Luis recorda que, em uma manhã daquele período de enchente, saiu de casa e percebeu que a água já havia chegado na esquina da residência.

A quatro quadras de distância, o escritório do DER estava alagado. Luis foi até o trabalho para ajudar a salvar documentos, e quando voltou para casa já a encontrou alagada. “A água subindo cada vez mais ligeiro. Não dava tempo para quase nada”.

Luis Carlos da Silva. Foto: Jornal O Comércio

De casa, Luis conseguiu salvar pouca coisa, como a geladeira, o sofá e um fogão a gás. Em pouco tempo a água já alcançava o teto do seu lar. E foi justamente pelo telhado que Luis entrou em casa, poucos dias depois, para salvar o mais importante: seu álbum de casamento. Como o item havia sido colocado em cima do guarda-roupa, acabou boiando na água. Assim que Luis conseguiu passar pelo telhado, com ajuda do irmão, encontrou a tão preciosa recordação. “O álbum era uma coisa que, se você perdesse, você não teria mais como recuperar. Hoje você tem pendrive, consegue guardar. O álbum de casamento se você perdesse nunca mais iria ter”, explica.

Para Luis, o mais difícil de todo aquele período foi justamente a volta para casa assim que a água baixou. Além dos móveis destruídos, também encontrou intrusos em casa, como aranhas, sapos e cobras. “Era uma tristeza”.

O imóvel, que era de madeira, ficou com paredes empenadas e janelas tortas, além da lama deixada quando o Iguaçu retornou ao seu leito. A reforma da casa ficou por conta do locador do imóvel. Tempo depois, Luis conseguiu comprar uma casa na mesma região. Em 1992, após vivenciar novamente uma enchente, decidiu não ficar mais à mercê do rio, e se mudou para uma área menos propensa a inundações.

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Histórias da grande enchente de 1983 no Vale do Iguaçu

Criado à beira do rio, Padre Aquiles Ramos Berton durante muito tempo considerou a cheia de 1957 como a maior da história do Vale do Iguaçu. Em 1983, o pároco havia acabado de assumir um posto na Catedral Sagrado Coração de Jesus, e logo veio a importante missão de resgatar o Santíssimo Sacramento da igreja do bairro Navegantes, que estava completamente inundada.

Padre Aquiles conseguiu entrar na igreja que naquela época era de madeira. Pegou o Santíssimo Sacramento e o colocou no bolso para que ficasse a salvo enquanto tentava retirar da água tudo o que pudesse. Pouco foi recuperado. Ao sair da igreja, se esqueceu do item que levava consigo. “Só a tarde que me lembrei e o levei para o sacrário”, relata.

Foi um tempo de muita dedicação à comunidade. Padre Aquiles recorda que o Bispo Don Valter não estava na cidade quando houve o estopim da cheia, pois tinha ido a Malta  visitar a mãe que estava doente. Ao descobrir sobre a calamidade que caíra sobre o Vale do Iguaçu, retornou imediatamente e encontrou a casa episcopal completamente inundada.

Histórias da grande enchente de 1983 no Vale do Iguaçu

Padre Aquiles Ramos Berton. Foto: Jornal O Comércio

Quanto a ajuda à comunidade, Padre Aquiles destaca a construção de casas feitas com a doação vinda da Caritas. Fora a oferta de alimento e abrigo, os padres também eram procurados para o apoio espiritual. O pároco chegou a distribuir folhetos pela cidade com mensagens visando motivar a população. “Muitas pessoas queriam ir embora da cidade, mas a mensagem era para reconstruir”.

A reconstrução foi o mote que guiou a família do Padre Aquiles. Moradores do bairro Navegantes, entre todos os seus familiares, foram sete casas destruídas pela enchente. O pai do pároco chegou a receber a doação de um terreno em uma área elevada da cidade, mas preferiu reconstruir no bairro que já fazia parte de sua vida. Construiu um sobrado para tentar se proteger das enchentes menores, recorrentes no bairro. Padre Aquiles seguiu os passos do pai. Até hoje não saiu do bairro e não pretende sair tão cedo. A precaução, entretanto, nunca é demais. O bote e o remo estão sempre a postos. “Aqui o pessoal aprende a remar desde cedo”, brinca.

Reportagem feita em parceria de Jaqueline Castaldon e Amauri Yamauti.

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