Ataque de cães evidencia necessidade de responsabilizar tutores

Em meados de janeiro, mais uma situação de ataque canino foi registrada no Vale do Iguaçu. Um senhor de 74 anos, identificado como Eduardo Karczewski, estava caminhando pela avenida Iguaçu, no bairro Navegantes, no dia 16 de janeiro, quando foi atacado por um cão de raça. Posteriormente, outros cães, sem raça definida (SRD), se juntaram ao primeiro animal no ataque. O idoso foi socorrido pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e levado para atendimento médico.

Na manhã do dia 17, contudo, o idoso apresentou complicações devido à série de mordidas que sofreu durante o ataque, sendo encaminhado pelo Samu ao Hospital Regional, onde ficou internado até o dia 22 de janeiro, dia em que veio a óbito.

A família de Eduardo tomou as medidas legais cabíveis, registrando boletim de ocorrência. Segundo a comarca de União da Vitória do Ministério Público do Paraná (MPPR), atualmente o caso segue na fase de inquérito policial e, posteriormente, deve ser enviado para análise do MPPR.

O caso gerou comoção nas redes sociais. Pessoas destacaram o fato de muitos animais estarem soltos nas ruas das cidades, e se questionaram sobre quem seria responsabilizado pela fatalidade. O fato é que, juridicamente, os animais não cometeram um crime. Mas os tutores, sim.

“Nessa situação, um dos vieses que a gente observa é a responsabilidade primeiramente do tutor, porque são cães que têm dono, certo? Então, ele vai responder tanto na esfera cível, a partir do artigo 936, que o responsabiliza civilmente, e também na esfera criminal, dependendo da lesão. Por exemplo, se é uma lesão corporal, ele vai responder por um artigo. No caso do senhor, às vezes, terá, possivelmente, um homicídio culposo”, explica Soiane Rudnicki, advogada animalista e presidente da Comissão de Direito dos Animais da subseção de União da Vitória da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Cachorros estavam na rua, mas não são “animais de rua”

Todos os cães envolvidos no ataque possuem tutor. A situação envolveu os animais SRD de um senhor considerado acumulador, por possuir 13 cachorros em casa. O cão de raça pertence ao vizinho. Segundo Marlene Goulart Jakubiw, membro da Defesa Animal de União da Vitória, os cachorros em questão tiveram acesso a rua, seja por falta de estrutura no cercamento da residência no caso do cachorro de raça, seja por uma cultura de permitir que os animais saiam para “passear” na rua no caso dos SRD. Mas nenhum deles era propriamente dito um animal de rua.

Onde fica a responsabilidade pública neste caso? De acordo com Marlene, a prefeitura tem acompanhado o caso do acumulador há tempo. Os 13 animais foram castrados pela administração pública, receberam remédio para controle de parasitas e, além disso, recebem visitas periódicas da veterinária da Defesa Animal. “O senhor tem na Defesa Animal um documento assinado em que ele se responsabiliza pelos animais dele. A responsabilidade é dele. Por ele ser um acumulador, a prefeitura há muito tempo acompanha os animais dele. Mas não tem como você chegar na casa dele, botar um cadeado, e impedir que ele solte os cachorros na rua”, afirma.

Ataque de cães evidencia necessidade de responsabilizar tutores

Cachorros nas ruas do Vale do Iguaçu são cenas comuns. (Animais desta imagem não estavam envolvidos nos fatos relatados nesta reportagem). Foto: Equipe JOC

Marlene também frisa a questão de que grande parte dos cães que vemos nas ruas possuem um tutor, mesmo que passem a maior parte do tempo fora da propriedade. “A responsabilidade de todas as ações e consequências de um animal é do tutor. E aí animais que vivem na rua, a grande maioria tem casa. Ele tem uma referência para onde ele volta pra dormir, pra se esconder embaixo do assoalho, para comer o resto que deram pra ele. (…) Estão na rua por negligência do tutor. [Muitas vezes] o tutor não tem cerca, principalmente nos bairros, não tem muro. Tem a cultura de que quem tem o cachorro fechado tem que soltar para dar uma voltinha. (…) É muito comum pessoas que mudam e deixam o animal na casa antiga. Aí o que a gente faz? Tenta conseguir um lar temporário, conseguir uma adoção imediata, [mas] nem sempre é possível. E vamos trabalhando, porque recolher num abrigo, fechar num canil é muito triste”.

Mas a partir de qual momento passo a ser responsável por um animal? Soiane orienta que, uma vez acolhido na propriedade, passa a existir a tutela. A exceção são situações específicas, como no caso de um animal ser recolhido por um curto momento após se ferir em um acidente, enquanto o humano auxilia o animal até que possa ser atendido pela Defesa Animal ou outro órgão responsável.

Também é importante destacar que os animais são tutelados pelo Estado segundo o artigo 225 da Constituição Federal que determina que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Segundo o artigo, cabe ao poder público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade”. Ou seja, essa tutela visa, principalmente, garantir o bem estar do animal por meio da criação de leis e da fiscalização.

Contudo, uma vez que um animal comprovadamente de rua se envolva em uma situação de ataque, existe a possibilidade de responsabilização da administração pública. “A gente vê várias decisões judiciais, vários precedentes na qual responsabiliza-se o município. É uma obrigação do município disponibilizar políticas públicas que atendam a essas situações. A gente vê hoje muito a questão do cão comunitário. Várias pessoas alimentam os cães comunitários. De quem é a responsabilidade se ele morder, se ele atacar? Muitas vezes as pessoas pensam [que] ela é da protetora animal, [que é] ela quem vai ter que aguar com isso. Mas não. A protetora animal vai lá e fornece a esse animal a política pública que não chegou a ele, o alimento que não chegou, o controle através da castração, o controle populacional. Então a responsabilidade [não é] da protetora ou do protetor, mas sim do município, que tem que fazer política de castração, de conscientização nas escolas e na base através das crianças”, completa Soiane.

Quanto ao cachorro de raça que se envolveu no ataque e que, assim como os SRD, também possui tutor, a Defesa Animal deve, por meio de sua veterinária, realizar os procedimentos necessários para atestar se o animal está passando por situação de maus tratos.

Recolhimento para abrigos

Tanto no caso de animais com tutores e que se envolvem em ataques ou daqueles que vivem na rua, é comum surgir o questionamento do porquê não ser feito o recolhimento para abrigos. Pode parecer uma solução simples, mas muitos fatores estão envolvidos nessa medida.

Um deles, de acordo com Marlene, é que o poder público não tem estrutura para abrigar tantos animais em condições de garantir seu bem estar. Para ela, caso sejam todos recolhidos, corre-se o risco de colocar os animais em locais que se assemelham a depósitos. O Vale do Iguaçu já vivenciou fato semelhante com a antiga Ong Koala, interditada em 2014 pelo MPPR devido às más condições de manutenção dos animais acolhidos. “Se você recolher tudo e fizer um depósito é maltrato. Aí você, na ideia de proteger um animal, tranca num canil. Ele fica como um presidiário, como se ele fosse um criminoso. Não. Nós temos que harmonizar o ambiente e ter uma convivência pacífica com eles”.

A situação ideal é a adoção, tanto no caso dos animais de rua quanto daqueles que sofreram algum tipo de agressão ou que se envolveram em um ataque. “Esse animal não pode ser recolhido para depósito. Ele tem que ser encaminhado para outra adoção, imediatamente, porque o animal não foi ele que cometeu o crime. Ele não merece ficar preso, ele não merece ficar atrás das grades ou amarrado numa corrente. Quem tem que ser penalizado é o tutor irresponsável”.

Direitos e deveres

Como em qualquer relação, existem os direitos e deveres. Mas, no caso do ser humano e do animal, apenas uma das partes é racional. Por isso, cabe ao tutor o dever de garantir os direitos básicos dos animais. E, com o passar dos anos, esses direitos se tornaram cada vez mais amplos.

Soiane comenta que desde de o início da década começou a ser discutida guarda compartilhada, pensão alimentícia e até mesmo situação de danos morais. Entretanto, os direitos básicos são mais simples. “O que o cachorro tem direito? A moradia, a alimentação, seu bem-estar no geral. Então ele se assemelha muito nessas circunstâncias ao direito humano, porque passa a se entender que o animal é um ser senciente, tem sentimentos e tudo mais, porém não é racional”.

Também cabe aos seres racionais a realização de denúncia caso presencie uma situação de maus tratos a um animal. Marlene comenta que é possível realizar uma denúncia pelo WhatsApp (42) 98841-8686. Nesse caso, abre-se um protocolo e a veterinária da instituição desenvolve um laudo para atestar se realmente existe uma situação de maus tratos.

Fui atacado por um animal. Como proceder?

Nesses casos, Soiane indica a confecção de um boletim de ocorrência e também a identificação do tutor do animal. Caso seja necessário atendimento médico, é possível inclusive pedir ressarcimento, desde que haja como comprovar os gastos. Caso o animal não possua tutor, o procedimento é o mesmo, porém, é possível pedir ressarcimento ao município, aponta a advogada.

Importância do adestramento

Além de advogada animalista, Soiane também trabalha com adestramento de cachorros, sendo proprietária da Clã Dog House. Para ela, adestrar um cachorro é essencial para garantir que esse tenha uma convivência mais harmoniosa em sociedade. “O cão, quando ele é agressivo, ele não é feliz. É um cão infeliz.(…) Toda matilha tem um líder. Isso é a natureza. (…) Você tem que ser o líder do seu cão. Você tem que ser o controle. (…) Quando não é o tutor, é um outro cachorro. Então, ele vai definir o que é e o que não é. Isso não pode acontecer. Isso é dentro do adestramento. A gente coloca já nas primeiras aulas quem que vai prover o alimento do cachorro. A gente faz a alimentação na mão. Para o cachorro entender que ele me prove o alimento, ele me prove a água, sabe? Para você ter um equilíbrio na matilha. Porque, lógico, todos os animais têm os instintos. (…) Por isso que a sociedade tem que entender que os cães também devem ser [educados]. A gente corrige o filho da gente. Por que a gente não vai educar também os nossos cães? Isso também é saudável. Os cães também têm que ter regras e disciplina e tudo mais para que não saia do controle”.

Futuro

Marlene relata que a Defesa Animal tem planejado algumas ações visando diminuir a situação de cachorros abandonados. Uma medida será a inclusão da educação a respeito da guarda responsável no currículo escolar da rede municipal. Também serão realizadas feiras de adoções. Além disso, é prevista a construção de uma espécie de centro de passagem, onde os animais possam ser abrigados, recuperados quando necessário, e após encaminhados para adoção responsável.

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