Violência doméstica: um ciclo difícil de se quebrar

A dificuldade de abandonar um relacionamento abusivo esbarra em vários fatores, entre eles os filhos,
a condição financeira e, agora, até mesmo a pandemia


No começo, tudo parecia um sonho. Maria* nunca havia sido tratada tão bem por alguém quanto foi por José*. Na ânsia de conquistar sua amada, o jovem a cortejava, elogiava, admirava. Não demorou muito para que a paquera virasse um namoro. Com a convivência, Maria começou a perceber algumas atitudes mais agressivas vindas de José. Era um xingamento aqui, uma frase dita em tom de voz mais alto acolá.

Certo dia, José chegou em casa mais cedo. O jantar ainda não estava pronto, o que foi o suficiente para que o rapaz gritasse com Maria e a ameasse dizendo que, caso o fato se repetisse, ela levaria uma surra. Maria ficou assustada, mas atribuiu a agressão a um possível problema no trabalho do namorado.

Também buscou procurar justificativas em seus próprios atos.

“Talvez eu seja culpada, deveria ter preparado o jantar antes”, pensou a jovem.

Nos dias seguintes a irritação de José oscilava, e a agressividade ficava maior. Maria passou a pensar duas vezes antes de dizer alguma coisa para o namorado. Também tentava ao máximo não fazer nada que pudesse fazê-lo perder o controle. Mas a tarefa não era fácil. Coisas mínimas eram o motivo perfeito para fazer José xingar a namorada.

O clima na casa era de constante tensão, e o dia a dia de Maria era viver dividida pelo medo que José a fazia passar e pelo amor e carinho que ele prometera lhe dar. Até que chegou o dia do aniversário de uma grande amiga da jovem. Maria colocou um vestido que José sempre elogiava quando ambos estavam começando a namorar. Maria estava feliz. Porém, quando José viu a roupa que a namorada estava vestindo, passou a gritar com a mulher, mandando-a trocar de roupa. Sem entender o porquê da ordem, Maria questionou o namorado, lembrando-o que, quando os dois se conheceram, ela usava aquele mesmo vestido. “Mulher minha não sai de casa assim”, disse José, partindo na direção de Maria e lhe dando vários tapas no rosto. José então saiu do quarto, e Maria ficou sentada no chão por um tempo, chorando.

Maria tomou, então, a decisão de ir para a casa de uma amiga, e assim o fez. Arrumou uma mala com o essencial e partiu, decidida a não voltar mais. Durante alguns dias, José não a procurou. Mas, depois de algum tempo, voltou a mandar mensagens para Maria, perguntando como a mulher estava e se dizendo arrependido. De início, Maria estava decidida a não voltar, mas José foi persistente, disse estar mudado, afirmou que nunca mais faria nada que pudesse feri-la. Em todas as mensagens, José também fazia questão de lembrar Maria de bons momentos que passaram juntos, dizendo que esses foram muito mais frequentes do que os maus. José apelou para os sentimentos de Maria, que cedeu à seu amado e acabou voltando…


Ciclo da violência

O relato apresentado acima, embora fictício, foi inspirado na realidade e ilustra o que a psicóloga norte-americana, Lenore Walker, chama de ciclo da violência contra a mulher. Para ela, existem três fases, que se repetem ciclicamente, sem um período de tempo específico entre uma fase e outra.

Na primeira fase ocorre o aumento da tensão, em que o agressor começa a ficar tenso com frequência e a ter acessos de raiva. Na segunda fase acontece o ato de violência em si, podendo ser uma agressão moral, física, psicológica, verbal ou patrimonial. Por fim, vem a fase do arrependimento e tratamento carinhoso.

É nessa última fase que o agressor muda de atitude para conquistar a vítima. Com a mudança, existe pressão da sociedade para que o casal volte, principalmente se o relacionamento resultar em filhos. Com a demonstração do remorso, a mulher acaba sentindo que tem culpa, o que aumenta a dependência entre a vítima e o agressor. A mulher então volta para o relacionamento, e o ciclo começa a se repetir, até o momento em que a mulher consegue denunciar o agressor e sair do relacionamento, ou, em alguns casos, o ciclo se encerra com o feminicídio, ou seja, o assassinato da vítima.


Violência contra a mulher e a pandemia

Quebrar o ciclo de violência não é fácil, muito menos quando um fator externo, como a pandemia de Covid-19, impede que a vítima deixe sua casa. Segundo o relatório Visível e Invisível, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pelo Instituto Datafolha, 73,5% das brasileiras acreditam que a violência contra as mulheres aumentou no país entre maio de 2020 e maio de 2021 (período estipulado para a realização da pesquisa).

Quanto a experiências pessoais, 50,8% das mulheres acreditam que a pandemia ajudou a agravar as violências que sofreram. No mesmo período, 18,6% dizem ter sido vítimas de ofensas verbais; 8,5 sofreram ameaças; 7,9% relataram amedrontamento ou perseguição; 6,3 foram vítimas de batidas, empurrões e chutes; 5,4% sofreram ofensas sexuais ou passaram por tentativa de relação sexual forçada; 3,1% foram ameaçadas com arma de fogo; 2,6% sofreram alguma lesão por objeto que foi atirado em sua direção; 2,4% sofreram espancamento ou tentativa de estrangulamento e 1,5% foi esfaqueada ou levou um tiro. As mulheres que mais relataram ter sofrido algum tipo de agressão são as mais jovens, com idade entre 16 e 24 anos (35,2%).

A pesquisa aponta, ainda, que as mulheres mais afetadas diretamente pela pandemia foram as que mais sofreram violência entre maio de 2020 e maio de 2021. Das mulheres que viram a renda familiar diminuir, 61,8% dizem ter sido vítimas de violência. 46,7% das que perderam o emprego também foram violentadas.

Quanto aos autores, 72,8% das mulheres disse ter sido violentada por um conhecido. Desses, 25,4% foram agredidas pelo marido/namorado; 18,1% pelo ex-marido/ex-namorado; 11,2% pelo pai ou pela mãe; 7,4% por um amigo (a); e 6,8% pelo patrão. Em contrapartida, 28,1% respondeu ter sido agredida por estranhos. Nesse caso, 12,3% das mulheres não sabem dizer quem foi seu agressor; 7,2% o identificam como um assaltante; 6,7% como um estranho; e 4,4% diz ter sido agredida por um policial. Sobre o local da violência, 48,8% das mulheres afirmaram ter sido agredidas na própria casa; 19,9% na rua; 9,4% no trabalho e 1,8% no bar/balada.

Na região atendida pela Delegacia da Mulher de União da Vitória é possível notar um aumento no número de procedimentos realizados pela delegacia entre janeiro e julho de 2020 e o mesmo período de 2021. Nos primeiros sete meses do ano passado foram realizados 681 inquéritos, boletins de análise, denúncias, entre outros procedimentos. Neste ano, até o mês de julho, o número de procedimentos realizados pela delegacia foi de 801, o que representa um aumento de 17,6%. Até a primeira semana de agosto deste ano, o número de procedimentos realizados em 2021 já representava 69% do total realizado no ano passado, que foi de 1178.

O número de medidas protetivas expedidas pela Delegacia da Mulher de União da Vitória também aumentou no período citado. Entre janeiro e julho de 2020 foram aprovados 246 pedidos. Neste ano foram expedidos 298 pedidos no mesmo período, marcando um aumento de 21%. Em comparação com o número total de medidas, em 2020 foram expedidas 416. Em 2021, até a primeira semana de agosto, 303 pedidos foram aceitos, o que representa 72,8% do total do ano passado.

“A violência contra as mulheres na nossa região é muito grande. O Coletivo Mais que Amélias foi formado por conta dos dados do Mapa da Violência de 2012 em que nossa cidade aparecia como uma das mais violentas do Paraná. Durante a pandemia o número de medidas protetivas expedidas pela delegacia da mulher quase triplicou. Lembrando que entre 10 a 20% das mulheres têm coragem de denunciar”, relata a vereadora e membro-fundadora do Coletivo Feminista Mais que Amélias e do Instituto Rosas do Contestado (Inroc), Thays Bieberbach.


Denúncia e atendimento

Formado em 2018, o Inroc tem como objetivo debater pautas relacionadas às mulheres, divulgar canais de denúncia e fortalecer a rede de atendimento e suporte às vítimas de violência.

“Nossa atuação acontece principalmente em escolas e comunidades de forma presencial, fazendo diferentes atividades de acordo com a realidade da comunidade. A maioria dos atendimentos do Inroc acontece durante as atividades e também pelas redes sociais que divulgamos. Todas as atividades que fazemos, tem atendimento. Nosso papel é acolher e ouvir quem nos procura, orientar quanto aos canais de denúncia, acompanhar elas quando sentem necessidade, acompanhar o processo e também com campanhas de arrecadação de alimentos, roupas e móveis. Também já demos suporte para mulheres que fugiram de sua cidade com medo de serem mortas por seus ex-marido/ex-namorado”, explica Thays.

Mas buscar ajuda nem sempre é fácil. Pelo menos é isso que aponta o relatório Visível e Invisível.

Segundo a pesquisa, 44,9% das mulheres que sofreram algum tipo de violência não procuraram ajuda; 35% procurou um órgão não oficial, e 24,7% procurou um órgão oficial. A ajuda da família e de amigos também foi bastante procurada, sendo citada por 21,6% das mulheres.

Entre os motivos revelados pelas mulheres para não procurarem a polícia após uma agressão estão a possibilidade de resolver o problema sozinha (32,8%), não achar que o fato era importante (16,8%), não querer envolver a polícia (15,3%), medo de sofrer represálias (13,4%), falta de provas (12,6%), não acreditar na polícia (5,6%) e ter o deslocamento dificultado ou impossibilitado pela pandemia (2,7%).
Na região, as mulheres de União da Vitória, Bituruna, Cruz Machado, Paula Freitas, Porto Vitória e General Carneiro podem ser atendidas na Delegacia da Mulher em casos de crimes sexuais e violência doméstica ou familiar, independente da idade.

“Todas as vítimas mulheres são atendidas, orientadas e aqui mesmo registram o boletim de ocorrência e, se necessário, solicitam medida protetiva de urgência. Então a solicitação é distribuída à uma das Varas Criminais para análise do pedido”, comenta Paola Graebin Jumes, escrivã da Delegacia.


FUNCIONAMENTO DA DELEGACIA DA MULHER

Horário de atendimento: de segunda a sexta-feira, das 09h às 12h e das 14h às 17h.
Em outros horários, finais de semana e feriados o atendimento ocorre junto a 4ª SDP.

Endereço: Rua Ipiranga, 444, Centro, União da Vitória – PR

Denúncias via WhatsApp: (42) 3522-5898

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