Crônica: “Juiz, eu sou vítima de abuso sexual”

Exatamente assim me relatou Julia, sete anos de idade, antes mesmo de falar seu nome, enquanto ainda se sentava na cadeira em minha frente, em uma sala reservada pela escola municipal. Julia era a primeira da grande fila que se formou após minha palestra, e com as mãos trêmulas, mas com olhar fixo direcionado a mim, disse ter sofrido violência sexual do tio. “Já aconteceu várias vezes”, emendou em seguida.

Crônica: "Juiz, eu sou vítima de abuso sexual"

Foto: reprodução

Minhas falas públicas em escolas e comunidades não são exatamente palestras, em que pese muitos as chamem assim. O plano não é esse, nem o formato, nem a razão de minha presença próxima das pessoas. Tratam-se de conversas, diálogos, especialmente de orientação e também acolhimento, mas sem formalidades típicas de abordagem mais técnicas.

Ainda assim muitos preceitos e cuidados precisam ser observados. Na escola municipal de Julia, em razão da idade dos alunos que ouviram minha fala, entre 5 e 10 anos, a conversa foi rápida, cerca de 20 minutos, o que é importante para que o caminhar do tempo não contribua para a dispersão dos pequenos infantes.

As falas públicas com crianças e adolescentes sobre violências são objeto de intenso estudo multidisciplinar que realizamos na época da criação, organização e formatação do chamado Projeto Confiar. Especialmente nos campos jurídico e psicológico o aprofundamento foi muito grande, com pesquisa em todos os locais que à época, meados da década passada, já produziam alguma providência mais protetiva e respeitosa com as vítimas de violência sexual. A pesquisa abrangeu todo o país, e experiências estrangeiras. Infelizmente não há ainda fluxo e rede de atendimento qualificado mesmo em muitos países mais desenvolvidos.

No Brasil o ineditismo da prática foi de um juiz gaúcho, e especialmente através de sua experiência buscamos desenvolver um método e um fluxo ainda mais completo e abrangente, até porque sua prática vinha se repetindo no tempo, sem muitas adequações posteriores, em que pese justamente ela moldou o que se tornou a lei do depoimento especial.

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Em União da Vitória, por sugestão e iniciativa do Promotor de Justiça Julio Ribeiro de Campos Neto, já não ouvimos crianças e adolescentes em temas sensíveis em audiências há quase duas décadas.

Antes da mudança estava marcada uma audiência com sete vítimas de violência sexual. De idades diversas, a mais nova com cinco anos, a mais velha já quase adulta (na lei brasileira quando se completa 18 anos), as quais estavam em uma entidade em que foram vítimas de violência sexual pelo adulto e adolescente que lá viviam com esposa e mãe, infelizmente justo aqueles que deveriam zelar pelos seus cuidados.

Antes de ir ao fórum passei em um supermercado comprar canetinhas coloridas, lápis de cor, folhas com desenhos para pintar, algumas balas e chocolates e deixei sobre a mesa da sala de audiências para que o ambiente ficasse mais receptivo e menos frio que o normal das salas de nossos fóruns.

Comecei a ouvi-las pela menor idade, e todas as vítimas choravam muito na sala de audiência, algumas nada conseguiram responder. Quando uma das adolescentes mais velha iniciou o depoimento, contou que dar presentes como canetinhas coloridas e balas era a forma que os abusadores usavam para criar vínculo de confiança com as vítimas antes de praticar a violência sexual. Foi a última audiência que fiz nesse formato.

Lamentavelmente ainda nos dias de hoje em muitos fóruns Brasil afora, mesmo após a lei que mudou (ou deveria ter mudado) o formato, juízes, promotores de justiça e advogados praticam verdadeiro abuso, com revitimização e desrespeito, questionando crianças e adolescentes como se adultos fossem, nem adultos deveriam ser assim “interrogados” sobre a possível pior situação que passaram em suas vidas.

Mesmo com a nova lei, ainda que se alocando Psicólogos, por vezes profissionais de outras áreas sem qualquer formação na área da abordagem infantil, com questionário muito próximo do que se fazia antes em uma sala de audiência, gravando vídeos ao vivo com público de sala cheia no outro lado do corredor sem que a vítima tenha consciência de tal, ou sabedora de que o acusado a assiste naquele momento, sem qualquer constrangimento ressalto, replicam-se práticas muito distantes da finalidade protetiva de crianças e adolescentes vítimas de crimes tão graves.

Naquela tarde na escola municipal, como sempre faço atendi todos que me procuraram ao final. Este atendimento/ acolhimento inclusive é incentivado durante minha fala.

Julia após contar espontaneamente como a violência ocorria, clamou: “Juiz,  estou aqui pedindo socorro, por favor me ajude. Prende ele juiz, eu não aguento mais!” completou em choro.

Muitas vítimas estão contando pela primeira vez a violência que sofrem. Nem mesmo aos familiares mais próximos algo foi relatado antes. Em razão do medo, vergonha, desespero, raiva, e mesmo incompreensão (especialmente pequenos infantes com pessoas com quem têm vínculo afetivo por convivência, tais como pais, avós, primos, tios, …), o elo de confiança que é criado pela fala pública do juiz é de fundamental importância para incutir a coragem para denunciar.

Técnicas para que a mensagem continue sendo alvo de reflexão contínua pelas crianças também são utilizadas nas falas públicas.

Alguns anos atrás recebi uma chamada no whatsapp de um amigo pastor de uma igreja na cidade, que havia sido procura do pelos pais de uma menina de 12 anos. Esta pediu ajuda a eles, quando ouviu o relato e pedido de socorro de sua melhor amiga da escola, chamada Mariana, vítima de violência sexual pelo padrasto.

Era feriado no dia da ligação do pastor a mim, mas ainda assim estava eu no fórum trabalhando com o grande volume de serviço que atendemos. Ao passar o endereço da vítima aos conselheiros tutelares pedi para que lá se dirigissem e socorressem a vítima. Solicitei também que a trouxessem ao fórum, onde seria acolhida por uma de nossas psicólogas que se voluntariou para ir ao fórum mesmo em dia de folga.

Eu sempre encontro pessoalmente com todas as vítimas que atendemos nos processos, para que possam ter elas um vínculo de confiança e segurança durante o tormentoso caminho percorrido depois de denunciar uma violência, e assim pedi para também atender Mariana.

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Ao entrar em minha sala ela abriu um largo sorriso, o que me causou estranheza: “O que a leva a sorrir em um dia tão tenso e difícil, quando acaba de ser levada a um lugar que nunca entrou, por pessoas que não conhece, após pedir ajuda para uma situação tão horrível?” rapidamente me questionei.

Mariana, algumas passadas após, ao se aproximar de minha mesa disse, ainda sorrindo:

– Juiz, você que palestrou na minha escola! Eu segui exatamente o que você disse para nós fazermos! Como é bom te ver aqui hoje.

Ao ouvir Mariana segurei o choro e mantive a firmeza e a expressão facial e corporal, porque não devemos indicar emoção ou sentimentos na presença da vítima, seja quando há relato da violência, ou mesmo pela comoção que senti naquele momento, quando ela ressaltou da alegria de ali me ver após me conhecer na palestra na escola. Apenas a abracei, mostrei a ela minha sala com os quadros coloridos e desenhos de crianças pelas paredes, disse que continuaria “ao lado dela” enquanto precisasse, passei meus contatos de redes socais, e a levei para a sala da Psicologia.

Foi por mim decretado o afastamento de casa do padrasto e a proibição de qualquer tipo de contato com Mariana. São muitos casos parecidos, e agora não me vem à memória se foi preso pelo juiz criminal ou condenado pelo crime. Mas a lembrança do sorriso de Mariana, quando entrou em minha sala do fórum, naquela tarde de um feriado, tenho certeza de que jamais esquecerei.*os nomes aqui utilizados, com exceção do Promotor de Justiça, são fictícios.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR)

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