Opinião: “Censura à arte é crime contra a humanidade”

Em ambientes democráticos, a censura é sempre um erro grosseiro, mas nem sempre fruto da estupidez. Exceto em um caso: quando a censura se dedica à arte. Não há saída, nestes casos, o pior do ser humano sempre está presente.

No Brasil, ou por nos faltar democracia, ou por nos sobrar estupidez, os exemplos de censura à arte são vastos. Gostamos de censurar peças de teatro, filmes, estátuas, pinturas e livros. No mês passado, a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro aprovou um projeto que ordena a derrubada de estátuas e placas que homenageiam escravocratas, higienistas e figuras antidemocráticas do passado. Com muita fé, o Cristo Redentor seguirá de pé. Com muita sorte, de braços abertos.

Curiosa a cabeça dos que acreditam promover reparação histórica escondendo o racismo no meio de escombros. Reparar o passado pressupõe conhecê-lo, não esquecê-lo. Além disso, odiar uma estátua de escravocrata não é odiar o escravocrata, mas a obra do artista que fez a estátua. Importa quem foram os retratados de Michelângelo e Da Vinci? Não percebe o legislador que derrubando estátuas, queimando livros, mata-se a arte, não o racismo?

Há alguns dias, ganhou a imprensa a notícia de que a Secretaria de Educação de Santa Catarina decidiu que nove livros seriam expulsos das bibliotecas de suas escolas estaduais. Livros clássicos como “Laranja Mecânica”, de Anthony Burguess, foram considerados impróprios aos estudantes. Bom, se algo é impróprio a quem está na fase de estudar, será próprio quando então?

É tolo acreditar que haja livros perigosos. Todas as melhores obras nos incomodam, nos inquietam, possuem conteúdo perturbador e, por isso mesmo, causam estranhamento capaz de nos fazer ver diferente e nos humanizar. A arte não é um espelho do que fomos ou do que somos, mas um estetoscópio que precisa ser capaz de sondar tudo e todos, habitar todos os lugares, ainda que provisoriamente. Assim, permite que vejamos coisas comuns de modo especial, transformando-as. Essa é a utilidade da arte, caso ela precisasse ter alguma.

A censura à arte não repara o passado, pois ele não pode – nem deve – ser escondido e também não constrói o presente, pois nada é construído sob a égide do medo. Como comentou em 2021 o Nobel de Literatura Kazuo Ishiguro, jovens autores têm deixado de produzir as ficções de que precisamos para produzir obras que agradem o gosto dominante, comprometendo o exercício de sua liberdade artística e a função revolucionária da arte.

Um dos atos mais intoleráveis do mundo é o de censurar a arte, tentativa torpe de destruir aquilo que não se entende. A censura à arte deve ser encarada como um crime contra a humanidade. A defesa da liberdade artística precisa ser compreendida dentro da perspectiva dos Direitos Humanos, pois sem arte não existe humanidade. A vida sem arte não apenas não basta, como disse Nietzsche, mas se torna desumana.

André Marsiglia é advogado e professor. Especialista em liberdade de expressão e direito digital. Pesquisa casos de censura no Brasil. É doutorando em direito pela PUC-SP e conselheiro no Conar. Escreve semanalmente para o Poder360, onde este artigo foi originalmente publicado.

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