Opinião: “O combate às fake news e a casa de loucos de Machado de Assis”

Na ficção machadiana “O Alienista”, um médico muito respeitado em sua cidade se decide ao estudo da loucura, recolhendo a cubículos de um sanatório chamado Casa Verde todos os que, segundo sua avaliação, eram doidos. O problema é que o médico via loucura em tudo; todos lhe pareciam loucos.

No conto, a Câmara de Vereadores, em nome da ciência, submeteu-se ao doutor, mas fez a ressalva de que seus membros, em hipótese alguma, poderiam ser levados ao sanatório. Não demorou muito e, exceto os vereadores, não sobrou ninguém solto na cidade. A Casa Verde passou a ser o mundo. Desolado, o médico foi convencido de que ele próprio é que deveria se recolher ao sanatório.

A história, de fato, mostra que o conceito de loucura pode ser um tanto complexo e escorregadio para encaixar as pessoas na simplista fórmula “louco/são”. Em geral, quem ambiciona olhar o mundo com tamanha severidade e, ao mesmo tempo, singeleza, merece mais estar na Casa Verde do que dizendo aos outros o que fazer. O mesmo se pode dizer dos conceitos de “verdade” e “mentira”, aplicados com fúria e estreiteza, em pleno 2023, pelos poderes da República, especialmente pela Suprema Corte, para distinguir conteúdos que representam a verdade dos que representam a mentira, e são chamados de fake news.

Há algum tempo venho insistindo que as fake news devem ser entendidas como “conteúdos anônimos fraudulentos”, jamais como sinônimo de “mentira”: a mentira faz parte do universo discursivo; a fraude, sobretudo anônima, não. Se o conceito que proponho fosse tomado como critério para exame dos casos, não seria possível, por exemplo, o Judiciário se valer de decisões liminares, sem contraditório, como tanto tem feito o ministro Alexandre de Moraes. Seria mais demorado o trâmite, mas evitaríamos que um ministro do STF cometesse censura, e a credibilidade da Corte seria preservada.

Também não seria possível travar uma batalha do “bem” contra o “mal”, como proposto pelo ministro Barroso, pois uma batalha pressupõe algo bem diverso de justiça. Acredito que batalhas contra o mal são cabíveis em contos de fada, que servem para enganar crianças. No mundo adulto e real, se acreditarmos que somos o “bem” e que o “mal” pode ser localizado em algo complexo como as “fake news” e em pessoas, como seus propagadores, estaremos perto de sair recolhendo qualquer um à Casa Verde do conto machadiano.

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No entanto, não creio que este meu conceito de fake news será adotado. Se fosse, impediria que Executivo, Legislativo e Judiciário se unissem em torno do imenso poder de controlar o discurso alheio do jeito que bem entenderem, pois mentira pode ser tudo e tudo pode ser mentira. O STF escolheu suas armas, e elas não são as da melhor técnica jurídica.

Enquanto isso, o Legislativo, de forma humilhante, prepara no atropelo uma lei servil, feita sob medida ao desejo do STF, sem debate com a sociedade. Nesta última semana, parlamentares afirmaram que aprovarão para muito breve um projeto sobre fake news que espelhe a visão dos ministros da Corte, com a ressalva de que os parlamentares serão poupados do alcance da própria lei que criaram. Repetindo o enredo do conto, nosso Congresso oferece a cabeça de quem se expressa em uma bandeja ao STF e tira seu corpo fora. Não é incrível como a vida imita a arte?

Há, porém, diferenças entre a crônica da vida real e a obra ficcional, e é preciso alertar o leitor: no mundo real, a chance de o médico se recolher à Casa Verde é nenhuma. Muito mais provável que você e eu o sejamos. Outra diferença é que, se aquela história foi contada por Machado de Assis, esta é contada por um tal André Marsiglia. Não se pode querer tudo, amigo leitor. Se a história do mundo é uma repetição incansável dos mesmos enredos, quem os relata sempre dá conta de os piorar um pouquinho.

André Marsiglia, advogado constitucionalista e membro da Comissão de Liberdade de Imprensa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – SP e da Comissão de Mídia e Entretenimento do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP).

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