Opinião: “Pondé e a censura líquida que secou”

Na última semana, o filósofo Luiz Felipe Pondé escreveu um artigo na Folha de S. Paulo chamado “Só sendo irrelevante você escapa da censura líquida de hoje”. O artigo traça um paralelo curioso entre o momento de nosso país e a tese do sociólogo Zygmunt Bauman, que cunhou o termo “líquido” para descrever como a modernidade estilhaçada nos lança valores diluídos, fazendo com que os vivenciemos de forma descartável e insensível. No caso da censura, por estar dispersa, não a localizaríamos concretamente para a enfrentarmos.

Acontece que a coisa é muito pior que isso. Na última semana, por exemplo, embora o caso Léo Lins tenha sido amplamente comentado na imprensa, pouco se tratou sobre a censura imposta a ele. O debate girou apenas em torno de ser ou não legítimo seu humor, tanto que quase nenhum profissional do Direito foi chamado a se manifestar. Quando alguém se lembrava da censura ao humorista, logo o foco era desviado para suas piadas potencialmente ofensivas a esta ou àquela minoria.

Há uma canção chamada “Haicai”, do compositor Luiz Tatit, em que o eu lírico sai correndo atrás da musa “Sofia” para lhe mostrar um poema e ela não lhe dá a mínima:

“Sofia, eu tô aqui esperando pra mostrar pra você aquela poesia. Que eu te lia, te lia, te lia. Você não ouvia, não ouvia, não ouvia.

Hoje é o dia, vem ouvir, vai.

Ela é pequenininha, parece um Haicai”.

Falar de censura, mesmo que rapidinho, como na canção, se tornou uma chatice inconveniente. Talvez a censura tenha se tornado tão irrelevante ao debate público quanto a poesia sempre foi à Sofia de Luiz Tatit, e ao brasileiro em geral. Se para poder falar mal do trabalho de um humorista indesejado foi necessário ignorar a censura, que seja.

Mas não significa que ninguém veja concretamente a censura, que ela esteja diluída e imperceptível – e é neste ponto que divirjo de Pondé. Ela está evidenciada na sentença contra Léo Lins, na estátua queimada de Borba Gato, na repulsa ao extraordinariamente genial escritor Monteiro Lobato. Enxergamos a censura personificada nestes episódios, mas não ligamos, a naturalizamos, virou uma velha tia que mora em casa, um agregado do debate público. Uma pequena turbulência que vale a pena passar para chegarmos a nosso destino: calar o que não desejamos ouvir. De excrescência jurídica, a censura foi promovida à aliada. Não está diluída, nós é que nos submetemos.

No sentimento íntimo das pessoas, o risco de censura não é mais motivo suficiente para impedir que se aprove um texto de Projeto de Lei, como o 2630/20, das Fake News, nem obstáculo suficiente para nos indignarmos com decisões proferidas nos últimos tempos por nossa Suprema Corte. A censura está lá, claríssima, palpável. Não a enfrentamos apenas porque já nos acomodamos a ela.

As próximas décadas serão ainda piores. Morrendo o conceito clássico de liberdade de expressão, morre também, por consequência, sua oponente, a censura. O discurso único poderá vigorar sem as impertinências da liberdade de expressão e sem as inconveniências da censura. Não estaremos no tempo da censura líquida, pois já não havendo mais nada a censurar, tendo toda a vontade de divergência à sua volta morrido, ela terá secado. Embora seja estranho pensar, enquanto alguém se importa com censura é porque há desejo de liberdade. O futuro é sem ambas. E este é o mundo que deixaremos para os filhos que deveríamos ao menos ter a delicadeza de não ter.

André Marsiglia é advogado, professor e articulista. Pesquisador de temas relacionados à censura. Escreve semanalmente sobre Direito e Política para a Revista Crusoé, onde este artigo foi publicado originalmente. Twitter: @marsiglia_andre

Possui alguma sugestão?

Clique aqui para conversar com a equipe de O Comércio no WhatsApp e siga nosso perfil no Instagram para não perder nenhuma notícia!

Voltar para matérias