Opinião: “Toca Raul!”

Como no Brasil ninguém lê nada, quando muito, ouvem-se canções, não demora e os leitores começarão a me dizer: cita Raul, cita Raul! Me adiantarei a eles e o farei espontaneamente, de bom grado. Há uma ótima canção chamada “Tá na hora” que, em determinado momento, diz: E enquanto eu vou pra frente/Toda minha vida atrasa.

Que versos proféticos. Resumem o Brasil atual de cabo a rabo. A rabo, principalmente. Deveriam ser enfiados no centro de nossa bandeira, no lugar do enfadonho e muito mentiroso “ordem e progresso”. Afinal, cumprimos as ordens de todos os malandros que nos mandaram e desmandaram até hoje e, até agora, nada de progresso.

Vejam só em que pé está o avanço do nosso retrocesso: nos disseram para votar nos políticos do amor, plantar as sementes do bem em nosso discurso e, claro, apoiar os juízes e tribunais que nos contaram empunhar a bandeira da democracia. Mas vejam só o ardil. Da missa, nos contaram a metade. Os políticos do amor querem se deleitar com a vingança, a semente do bem do discurso tem uma letra miúda relevante, que é a de ser necessário odiar mortalmente aquele que pensa diferente, e os juízes empunham a bandeira democrática, mas sob a condição de que valha apenas a sua própria visão do que é a democracia; do contrário, não apenas deixam de empunhar a bandeira, como dão com o mastro em nossas plebeias cabeças ocas.

Tudo isto me lembra uma anedota curiosa em que um empregador certa vez reuniu todos os seus funcionários em torno de sua enorme mesa de trabalho e lhes disse com severa convicção: “aqui nesta empresa vigoram de forma soberana os valores democráticos, a liberdade de expressão, todos devem ser extremamente sinceros e dizer sempre, sem qualquer receio, tudo o que lhes vier à cabeça, mesmo que isso custe o emprego”.

Nosso governo ultrapassa todos os limites possíveis e imagináveis dizendo que a Venezuela de Maduro ser ou não democrática é uma questão de lábia. Se o governo entende que o conceito de democracia é uma questão de ponto de vista, naturalmente, seu compromisso com a nossa passa a ser alvo de desconfiança. Nosso Judiciário supremo ultrapassa todos os limites do aceitável ao sair de sua recomendada inércia para julgar tudo e todos, dando palestras sobre o que deve ser a democracia e publicando nas redes sociais mensagens de estímulo a que discursos contrários ao da Corte sejam denunciados. Em geral, tinha-se por ativismo judicial um juiz ou tribunal se meter, sem ser chamado, em atos administrativos. Fomos além e inventamos agora um ativismo administrativo, em que os atos já são concebidos pelos próprios juízes e tribunais.

Uma dúvida: será que nosso Legislativo ultrapassa também os limites, caro leitor? Ah, nosso Legislativo está é dormindo na rede preguiçosa dos demais poderes. Enquanto lhe levarem à boca água de coco e doces apetitosos, seguirão dormindo. Quando acordarem, ah… se acordarem… será tarde.

Ora, mas aí não dá, pensará o leitor. Dá, faz força que dá, meu amigo. É esta a proposta que está na mesa nos sendo feita. Pegue-a enquanto é tempo ou se conforme em receber do discurso do amor, o ódio e, da justiça, uma martelada na cabeça.

Claro que se deseja ao país que todo o ódio seja extinto, toda a maldade seja erradicada, toda a justiça seja feita, mas tem de ser toda, não é mesmo? Não vale forçar a barra para que apenas uma visão de mundo se imponha, uma visão ideológica prospere, um conceito de democracia se constitua. Do contrário, ir para frente, como na canção, será um atraso na nossa vida e na do país.

Na canção, aliás, a continuação dos versos: enquanto eu vou pra frente, toda a minha vida atrasa, é a seguinte: eu tenho muita paciência, mas a minha independência, onde é que tá?

Toca Raul!.

André Marsiglia é advogado, professor e articulista. Pesquisador de temas relacionados à censura. Escreve semanalmente sobre Direito e Política para a Revista Crusoé, onde este artigo foi publicado originalmente. Twitter: @marsiglia_andre

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