R$ 50 bilhões de motivos para repensar o Brasil

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Atualizado há 3 anos

Provando o velho truísmo de que o maior esporte do homem é falar do dinheiro dos outros, o assunto do domingo foi a nota do nosso colega Lauro Jardim dizendo que “uma família de São Paulo acaba de enviar ao exterior a módica quantia de R$ 50 bilhões”, e que a mesma família pagou impostos de transmissão (ITCMD) da ordem de R$ 2 bilhões. Glossário para quem não tem herança a deixar ou receber: o ITCMD é devido quando um herdeiro recebe sua herança, ou quando alguém doa patrimônio em vida a terceiros.

Os grupos de Whatsapp explodiram em especulações sobre quem poderia ser este ‘Contribuinte do Ano’, para o qual o Governo de São Paulo já deve estar mandando fazer uma estátua. Alguns grupos botaram suas fichas na família de Aloysio Faria, o lendário fundador do Banco Real, que morreu no mês passado aos 99 anos. A remessa seria uma decisão dos herdeiros como parte da sucessão, mas uma pessoa de dentro da família enterrou a especulação, dizendo ao Brazil Journal (https://www.instagram.com/braziljournal/): “Posso te garantir que isso não tem nada ver com Aloysio Faria; até porque, pagar um ITCMD em 30 dias seria um recorde!” Na dilapidada moeda brasileira, R$ 50 bilhões valem hoje magros US$ 9 bilhões — mas, se usando-se um câmbio médio de R$ 3,75 (prevalente há pouco tempo), R$ 50 bilhões já seriam US$ 13 bilhões.

O ponto é: uma família teria que ganhar US$ 660 milhões líquidos — por ano, e ao longo de 20 anos — para acumular este tipo de liquidez. (Ok, a conta de padeiro obviamente não leva em consideração o compounding do patrimônio ao longo do tempo.) Para efeito de comparação, R$ 50 bilhões é o equivalente a mandar para o exterior 130% de uma Lojas Renner (R$ 32 bilhões de market cap), três BRFs (R$ 15 bi, e tem troco) e cinco Cyrelas (R$ 10 bi).

Outros concluíram que um suspeito melhor é a família Safra, que, apesar de seu patrimônio internacional conhecido, ainda teria (antes da suposta remessa) uma parte significativa do patrimônio em reais. O problema com esta tese é que, ao que consta, ‘seu José’ já fez uma doação em vida para os filhos e já pagou o imposto há tempos. Quando comprou o banco suíço Sarasin em 2012, o banqueiro trocou seu domicílio fiscal para Genebra e praticamente zerou sua liquidez em reais. Parte do ceticismo também tem a ver com o fato de que os herdeiros (qualquer que seja a família) poderiam ter remetido os recursos mas feito a doação lá fora, deixando de pagar o imposto. (O direito dos estados de cobrar o ITCMD nas doações feitas no exterior está sendo contestado no STF, porque nunca se aprovou a lei complementar necessária para regulamentar o assunto.

Coincidentemente, se é que há coincidências, na quarta-feira passada o STF pautou o assunto para o dia 23 de outubro.) “A verdade é que são pouquíssimas famílias com este tipo de liquidez no Brasil,” disse um banqueiro. “Conta-se numa mão. A maior parte dos empresários tem seu patrimônio nas empresas, mas não este tipo de liquidez.” Outro concordou: “Os caras mais ricos do Brasil não moram no Brasil. Quando você pega essas listas de bilionários, a maioria tem domicílio fiscal lá fora.”

Enquanto a busca pelo bilionário continua, cabe uma reflexão sobre por que alguém, com a taxa de câmbio no nível nominal mais baixo da história, ainda assim remeteria toda essa liquidez ao exterior. Essa remessa (ainda que ela fosse um quinto ou um décimo do valor noticiado) diz muito sobre o Brasil. Seria um veredito sobre nossa falta de compromisso com contas públicas equilibradas e a saúde da nossa moeda? Ou uma opinião sobre as chances do Governo atual de executar uma agenda de reformas relevante nos dois anos que restam? Quem sabe é um comentário sobre os conflitos do nosso Judiciário, a mediocridade de boa parte do Legislativo e nossas prioridades enquanto sociedade?

Morando aqui no Brasil, aqueles R$ 50 bi pagam impostos a um Estado dono de petroleira e estatal de eletricidade, mas onde 100 milhões de pessoas (metade da população) não tem coleta de esgoto em casa. Um País com Caixa, Banco do Brasil, Banco do Nordeste e Banco da Amazônia — mas onde 30% dos adultos são analfabetos funcionais. Será isso o que fez o dinheiro mudar de endereço? Não precisa ser herdeiro pra saber a resposta.