SENAC: Não se engane. Não é só um corte de cabelo

Cursos da área de beleza transformam a aparência e embelezam a alma. Diante do espelho – e dos resultados – alunos entendem na prática o que é cidadania

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Atualizado há 5 anos

O que torna uma pessoa cidadã? A discussão sobre a complexidade que da resposta pode ser breve. E até simples. A definição de cidadania se tornou quase uma opinião particular, embora repleta de significados. É que, como define o historiador José Murilo de Carvalho na introdução de sua obra, ‘Cidadania no Brasil’, “a cidadania, literalmente, caiu na boca do povo. Não se diz mais ‘o povo quer isto ou aquilo’, diz-se, ‘a cidadania quer’. Cidadania virou gente”.

Como “gente”, ela pode ser palpável e estar mais próxima, incluindo mais ainda. “Cidadania é o resultado da conquista dos Direitos Civis, depois dos Direitos Políticos e depois dos Direitos Sociais. Se a ordem for alterada, a cidadania sai diferente, um pouco torta, digamos”, defende o professor e doutor em História do campus de Canoinhas da Universidade do Contestado (UnC), Alexandre Assis Tomporoski. Mantida essa linearidade, a cidadania pode ser mais leve – e ainda assim, pesar toneladas, tamanho seu impacto na vida de quem a busca.

Em União da Vitória, a Vara da Infância e Juventude tentar dar um sentido prático à cidadania. Teoricamente, ela aparece como “letreiro”, no nome de um projeto especial, que promove a saída das equipes e serviços do fórum até os bairros. Trata-se do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania, o Cejusc. Sob a batuta do juiz, Carlos Mattioli, as ações são descentralizadas, tem como mote o desenvolvimento das pessoas e contam com uma rede de parceiros.

Um deles, é o time do Senac. É que na unidade, cidadania é o ar que se respira nos corredores, na cantina e de maneira mais especial, nos cursos das áreas de beleza. Na unidade local, por exemplo, essa cidadania aparece explicitada e também disfarçada, ora como alunos ora como comunidade. É onde o conceito é experimentado, digerido, refinado, o tempo todo. Na prática, a cidadania aparece em um corte de cabelo, na pintura das unhas, nas cores da maquiagem e nos penteados, tratamentos e cuidados que devolvem serenidade às marcas do tempo, muitas vezes disparadas pela ausência do “ser cidadão”.

Para atualizar a rede social e a vida: modelos e alunos registram tudo, na comemoração de mais uma página virada
Para atualizar a rede social e a vida: modelos e alunos registram tudo, na comemoração de mais uma página virada (Fotos: Mariana Honesko).

Para Mattioli, o Cejusc, embora ainda receba um olhar de preconceito de uma parte dos próprios servidores, tem na estrutura do Senac um pilar importante para se manter de pé e levar oportunidade a quem precisa. E não se trata de assistencialismo, antes, de empatia. “É um trabalho de cidadania, quando a gente busca um atendimento diferenciado que permita que as pessoas encontrem novos caminhos para o desenvolvimento humano e da família. Isso resgata inclusive, a autoestima. Toda a sociedade e nós, servidores públicos, temos a necessidade de atender com maior qualificação, se colocar no lugar do outro e entender porque alguém age de um jeito ou de outro. Buscamos promover algo que entenda o outro, fazer com as pessoas se sintam parte da comunidade e esse sentir-se, parte de um primeiro passo, que é o de cuidar dessa pessoa”, defende o magistrado.

A parceria deu tão certo que apenas em 2018, o Senac garantiu o atendimento de mais de três mil pessoas, a maioria, visitantes das iniciativas do Cejusc nas comunidades mais carentes do município. Mas, professores e alunos da entidade foram além. No ano passado, no andamento do curso de Cabeleireiro que terminou em maio, foram feitas visitas e atendimentos em asilos, abrigos e até em uma clínica de tratamento de dependentes de álcool e outras drogas, ambientes muitas vezes invisíveis à sociedade.

Kárylin deixou a carreira e cargos promissores em busca da realização profissional: agora, ela já tem seu leque de opções (Fotos: Mariana Honesko).
Kárylin deixou a carreira e cargos promissores em busca da realização profissional: agora, ela já tem seu leque de opções 

Exibindo seu leque de certificados nas mãos, todos conquistados no Senac de União da Vitória, Kárylen Pereira, 36, esteve em boa parte dessas mobilizações. Depois de vários empregos e de tentativas sinceras de trabalhar na área de sua formação, em Relações Públicas, ela encontrou a beleza de sua real vocação a partir das experiências oferecidas pela entidade durante o curso de Cabeleireiro. Foi ali, entre um corte e outro, ouvindo histórias, devolvendo sorrisos, que ela se encontrou e se tornou, em 2018, mais uma das profissionais formadas na unidade local do Senac.

Para Kárylen, foi mais que um título – ou, no caso dela vários – para expor na estante da sala ou encher o currículo. “Tive depressão, síndrome de pânico e não via mais sentido, mais propósito em nada do que eu fazia”, conta. “Fiz todos os cursos no Senac, confiando na instituição e por ver ali a junção do trabalho social com a educacional. O Senac faz mais do que profissionalizar as pessoas”.

E foi uma via de mão dupla, porque Kárylen deu e recebeu, como com maestria definiu Clarice Lispector, “pequenos carinhos”. Dois de seus cursos não tiveram custo algum, realizados dentro da modalidade Programa Senac de Gratuidade (PSG). “É muito mais do que embelezar uma pessoa. O curso te ensina a dar carinho para uma pessoa que não tem, que as vezes busca o Senac para ser modelo, mas que na verdade busca apenas afeto”, sorri.


Não é o fim

Era um ambiente que exalava concentração. Mas também alegria, com precoces pitadas de saudades. Uma mexa colocada no alto, um grampo de cabelo na altura da orelha. Secadores ligados. Escovas deslizando sobre madeixas negras, louras. Uma orquestra, comandada apenas pela troca de olhar e pausado somente para retoques.

No encerramento de uma jornada longa, de 400 horas, as colegas do primeiro dia de aula se tornam amigas; as modelos, irmãs: trocam ideias, sugerem, emprestam material: tudo para garantir “dez com estrelinha” na apresentação do Projeto Integrador (PI), uma espécie de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), onde o que se aprendeu ao longo da capacitação é colocado à prova. Sem exceções, as noites de entrega do PI terminam exatamente como as alunas esperavam, com modelos satisfeitas, propostas temáticas e na maioria absoluta dos casos, com a aprovação.

Preparadas para ingressar em um mercado promissor, que consegue dar um nó na crise econômica (veja o quadro) e se posicionar como uma das melhores e mais rentáveis profissões, as novas cabeleireiras saem da unidade do Senac com diploma na mão e muito, muito aprendizado no coração e na alma. “Aqui as alunas são avaliadas em todo o contexto. Inclusive a postura, o atendimento. Nos nossos cursos, em todos eles, os alunos aprendem tudo isso, desde o recebimento do cliente até a hora de se despedir dele”, ressalta a Técnica de Relações com o Mercado, Paulo Perizollo Leandro. “Todo o Senac se envolve nessa inclusão, oferendo algo de qualidade para quem mais precisa”.

Por isso, quem senta na cadeira do Salão de Beleza – Escola, do Senac jamais foi ali apenas para um corte. O caminho, de casa até a unidade, significa muito mais para quem quer sair da invisibilidade, para quem precisa de coragem para voltar a estudar, cabeça erguida para procurar um emprego e mais vaidade para viver com profundidade os inúmeros papeis que o cotidiano exige. “A nossa área é especial, e é onde precisamos deixar a pessoa mais bonita do que chegou”, sorri a instrutora do curso de Cabeleireiro da unidade em União da Vitória, Vânia Muller. Os modelos que procurar a unidade uma vez, confiando no trabalho dos alunos, se tornam clientes. Às vezes, até mais do que isso. “Todos os que vem aqui uma vez, voltam”, confirma.

Entre os anos de 2009 e 2018, os cursos da área de beleza do Senac de União da Vitória receberam mais de 2,5 mil alunos, em 111 turmas

E quem optou pelo curso, não escolheu um passatempo, mas sim, virar a página de sua própria história. O diploma na mão, especialmente para as alunas mulheres, vai além da titulação. Trata-se do empoderamento, do fim da dependência financeira do companheiro. Nascem nos cursos, todos os anos mulheres que vão abrir seu próprio negócio, gerenciar seus recursos, ser dona do próprio nariz. São Marias, Anas, Ritas. E Marilzas.

“É prazeroso você ver uma pessoa que chega e sai feliz, bonita. Eles vem, de graça, e quem sai realizada somos nós!” - Marilza, sua fila e a companheira de dupla, Kariane de Lima
“É prazeroso você ver uma pessoa que chega e sai feliz, bonita. Eles vem, de graça, e quem sai realizada somos nós!” – Marilza, sua fila e a companheira de dupla, Kariane de Lima

“Moramos em uma fazenda de reflorestamento de pinos. Eu ficava só na casa. Ai, me veio a ideia do curso de cabeleireira. Procurei o Senac e quando vim fazer a inscrição, vi pela janela uma outra aluna fazendo o curso e eu pensei: ‘agora serei eu ali’”, conta Marilza Pereira da Silva, moradora da cidade de General Carneiro (40 km até a unidade do Senac de União da Vitória). A filha dela, Stefani Oliveira, serviu como modelo das aulas práticas da mãe. Em família, o negócio deve prosperar. “A mãe buscou aqui para a independência financeira dela. Eu já fiz cursos aqui também de alongamento de cílios e a mina irmã, se interessa por maquiagem”, conta, animada. “Vamos fazer mais cursos e queremos abrir um salão”, revela a mãe. Até lá, o bônus já é evidente. “Você entra de um jeito e sai diferente, com a mentalidade muito mais aberta. É o conhecimento que abre os olhos”, emociona-se Marilza.

400 HORAS

é a carga horária do curso de Cabelereiro no Senac

Espelho, espelho meu

“Quero mudar”. “Corta, mas só dois dedos”. “Raspa!”. “Pinta de vermelho!”. Diante do espelho, os modelos dos cursos de beleza do Senac, agendados a partir da organização da instrutora de cada modalidade, querem a mesma coisa: sentir-se bem, com a estima nas nuvens. Afinal, a estima é o que move o cotidiano das pessoas.

E não se trata de vaidade, é bem-estar, algo até acima do bem e do mal, capaz de tornar os tímidos, corajosos; os tristes, alegres. “Autoestima é algo estudado a muito tempo, especialmente dentro das questões do inconsciente, de como ela reflete no ser humano. Ela é um senso geral sobre como o indivíduo se auto avalia, como ele mede ou se aprova, como ele mede suas qualidades, a maneira como ele se aprecia ou não. A autoestima é a atitude que a pessoa tem em relação à ela mesma”, define a psicóloga, Daniele Jasniewski.

Silmara Schneing é de Cruz Machado, participou como modelo e se vestiu como alemã, para o PI de quem a convidou: “me sinto maravilhosa!”
Silmara Schneing é de Cruz Machado, participou como modelo e se vestiu como alemã, para o PI de quem a convidou: “me sinto maravilhosa!”

A genética, a idade, a qualidade dos pensamentos, circunstâncias sociais, a saúde – ou a falta dela – a forma como as pessoas se comparam, são fatores que podem ser determinantes para mensurar a estima, se ela é alta ou baixa. Por isso, Daniele lembra que a autoestima não é fixa: pode ser melhorada, de acordo com as interferências da vida e de como cada pessoa reage. E ir ao salão de beleza, para homens e mulheres, pode fazer diferença. “E muita diferença! Não é uma via de mão única. Esse cuidado com a aparência, com a estética. Autoestima e autocuidado, se retroalimentam. De que forma? Se eu tenho uma estima elevada, eu vou cuidar da forma que eu me apresento ao mundo. E vice-versa”, aponta a profissional. “Cuidar da estética é uma ação de cidadania. A atenção com o biopsiquisocial são ações de cidadania”.

No caso dos cursos do Senac, o ganho é duplo, o tempo todo. Afinal, os modelos das aulas práticas – e dos projetos sociais – recebem algo especial, mas, por outro lado, muito mais que um serviço, ganha o profissional, ou estudante, que colocou em pratica a experiência. “Quem doou aquele serviço, gana experiência de vida. Entre o doador e recepto, considero que quem está doando seu tempo e serviço, gana muito mais”, avalia Daniele.

E se autoestima determina a qualidade das relações, isso é determinante também no comportamento de alguém na sociedade. Alguém de bem consigo mesmo, é uma esposa melhor, um marido melhor, um funcionário educado, uma cliente feliz. Quem está bem, não pensa em maldade, em corrupção, em violência, em se vingar ou em se dar bem a qualquer preço. É cidadão, pleno, em todos os aspectos. Já ensinou Carvalho: “os direitos sociais permitem às sociedades politicamente organizadas reduzir os excessos de desigualdade produzidos pelo capitalismo e garantir um mínimo de bem-estar para todos”. Cidadania tem a ver com justiça social – e isso vale para todos, e para o bem de todos.

Instrutora Vânia Muller defende seu “peixe”: quem é modelo dos cursos de beleza do Senac, não se arrepende
Instrutora Vânia Muller defende seu “peixe”: quem é modelo dos cursos de beleza do Senac, não se arrepende

Sem espaço para a crise

A vaidade e a vontade de ter uma aparência boa e saudável impulsionam o crescimento dos serviços nas áreas de beleza. Crescem, por exemplo, o número de novos salões de beleza, de barbearias (os homens estão cada vez mais vaidosos) assim como a venda de cosméticos e outros itens de higiene pessoal.

Dados da Associação Brasileira de Indústrias de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec), por exemplo, mostram que o setor de beleza vem crescendo, em média 10,4% ao ano.

Os dados, satisfatórios, levam para uma liderança mundial no segmento até 2021. E as oportunidades vão das capitais às cidades do interior – como é o caso de União da Vitória. Segundo o Sebrae, o segmento da beleza é um dos mais vantajosos no Brasil, que deve crescer mais de 14% até o ano que vem. Mais de sete mil salões de beleza são abertos por mês em todo o território nacional – a maioria, como microempreendedores individuais, conforme a entidade. O segmento ocupa o terceiro lugar no ranking mundial – e deve ultrapassar o Japão na posição de segundo, ficando apenas atrás dos Estados Unidos.

Para Paula Perizollo, harmonia entre todos os cursos do Senac garante inclusão
Para Paula Perizollo, harmonia entre todos os cursos do Senac garante inclusão