Prática pioneira no Brasil está fazendo a diferença em caso judiciais

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Atualizado há 6 anos

ConstelaXXXXoNo dia 4 de abril, no Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), em União da Vitória, que fica junto com a Vara da Família, Infância e Juventude, algumas pessoas envolvidas em processos judiciais foram convidadas a participar voluntariamente de um encontro. Muitos chegaram sem saber do que se tratava. Ao ouvir a explicação da dinâmica que iria acontecer durante a tarde, alguns torceram o nariz e já se explicaram: “Isso não resolve o meu caso, pois o problema não é meu, é do outro”. Não entenderam a essência do encontro, onde já no início foi explicado que todos fazem parte de um sistema e é nesse sistema que “os culpados” se interconectam.

O encontro é, na realidade, uma novidade do judiciário brasileiro e faz parte das práticas do Cejusc há mais de um ano. Nele, é utilizado as Constelações Familiares Sistêmicas, uma proposta diferente de resolver conflitos. A intenção é usar as constelações para esclarecer aos envolvidos em casos judiciais o que existe por trás do conflito que gerou o processo, isto é, que tipo de comportamento da família colaborou com o fato que está acontecendo. Normalmente são conflitos que vão desde divórcios, guarda de filhos, abandono, desentendimentos entre pais e filhos, uso de drogas e até violência doméstica. “Cabe ao Poder Judiciário moderno buscar técnicas além do formato tradicional de trabalho. Em inúmeros casos nada poderá ser feito ou resolvido sem a utilização de métodos que tratem não apenas os problemas e desentendimentos jurídicos, mas também essencialmente olhem com mais precisão ao ser humano por trás dos processos”, explica o Juiz de Direito, Carlos Eduardo Mattioli Kockanny, um dos responsáveis pela implantação do projeto no Cejusc.

A prática é aplicada pela equipe do Cejusc e mediada pela  consteladora familiar Fernanda Lenz Ravanello. Os resultados mostram que o trabalho está dando certo. Em 2017, ano que iniciou a prática em União da Vitória, 12 casos foram constelados e, desses, nenhum voltou para a mesa do juiz, isto é, foram resolvidos de forma consensual. Fernanda comemora os resultados e diz que, em 2018, esse é o segundo encontro que teve boas consequências. Segundo o Juiz, em muitos dos processos em trâmite na Vara de Família, verifica-se que a origem do conflito está em questões muito mais subjetivas, pertinentes aos relacionamentos familiares e não somente em relação ao desentendimento quanto às situações jurídicas propriamente ditas. “A prática já demonstra efeitos positivos nos casos atendidos nesta forma de abordagem. Pode-se constatar a partir de que as partes dificilmente retornam ao Fórum com queixas ou conflitos, ou seja, compreende-se que houve a resolução das questões que geravam o desacordo.  Nas audiências judiciais de partes que já passaram pela prática nota-se comportamento muito mais receptivo ao diálogo e possível acordo”, revela.

Como funciona a constelação sistêmica

A ideia da Constelação Sistêmica é que cada pessoa está ligada a alguns sistemas, que são constituídos pela família e relacionamentos importantes, como o de trabalho, estudo etc. Quem aceita participar da Constelação, narra ao mediador, de forma resumida, o problema, dificuldade ou conflito que está vivenciando. O mediador convida as pessoas que estão na sala para representarem os personagens da história, isto é, fazerem o papel de mãe, pai, filho, avós da pessoa que busca a resolução do seu problema. Mas não é um teatro, não existe atuação falsa. O mediador faz perguntas a esses representantes e eles expressam o que estão sentindo e de que forma estão envolvidos naquele sistema. “A ideia é que a pessoa que está constelando possa enxergar sua vida de fora, encontrando os nós de seus emaranhados. É como um novelo de lã, que fica cheio de nós. A constelação solta um pouco os fios.  A gente consegue enxergar pelo menos onde estão os nós”, conta Fernanda.

Segundo ela, essa visualização ajuda a tomar consciência de como se posicionar nos conflitos expostos, dando possibilidade de uma decisão mais assertiva em relação a forma que está o processo.  Como consequência, acaba por fornecer ferramentas aos envolvidos para que possam buscar as soluções para as questões que eventualmente enfrentarão no futuro. “A partir de um maior entendimento de questões que não são vistas sob o olhar físico e prático do dia-a-dia e até mesmo dos processos judiciários, direcionando a visão para a causa, muitas vezes desconhecida, o próprio conflito ganha ressignificação”, detalha Mattioli.

Além de advogados e juízes, podem participar dos encontros outros profissionais e também pessoas convidadas para representar os personagens do sistema de quem está constelando. A prática permite que as pessoas visualizem que padrão familiar deu origem ao seu comportamento. Dessa forma, o Direito Sistêmico preocupa-se em ser um caminho real e uma alternativa para a solução, podendo olhar para um lugar diferente e buscando solução.

Fernanda destaca que, para quem participa da constelação, não expondo seus casos, apenas sendo personagem, vive também um processo de aprendizado pois, segundo a consteladora, ao sentir o que o outro sente, nunca mais observa esse problema com os mesmo olhos. “É uma escola de vida. Amplia a visão e ensina a não julgar. Depois que você vê a situação, você não deixa de ‘desver’. Aí você tem atitudes em relação a isso. É o movimento da alma alinhada com a vida”, explica.

O que diz a lei sobre essa prática

A Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o novo Código de Processo Civil, enfatizaram a solução de conflitos judiciais por meio do consenso entre as partes, inclusive com auxílio de profissionais de outras áreas de conhecimento, quando se trata de família. A constelação familiar sistêmica está, então, em conformidade com essa resolução.

O Brasil é pioneiro na implantação dessa técnica no judiciário. O primeiro juiz que implantou constelação em seus processos foi o Sami Storch, da 2ª Vara de Família de Itabuna, na Bahia, em 2012. Ele atestou que nos processos em que ambas as partes participaram da vivência de constelações, o resultado foi 100% positivo e o conflito resolvido, sem reincidência de processos judiciais. “Nosso País está despontando através da abertura do judiciário. É uma inovação que nenhum outro teve. Está sendo um grande laboratório que vai abrir para o mundo inteiro, e a adesão dos juízes está sendo surpreendente”, ressalta Fernanda.

Hoje, o poder judiciário tem núcleos de violência doméstica que cuida e trata do agredido, mas o agressor não é atendido, apenas punido. Ela conta que, dessa forma, o conflito continua, pois não se resolve o problema. “O conflito familiar pode acabar com a família e se dissolver, mas quando se tem o entendimento sistêmico de como se dão as relações familiares, as pessoas têm novas ferramentas de resolução. Não ficam só no confronto, elas ampliam o olhar”, conta Fernanda. Ela destaca que uma pessoa que cometeu um assassinato não vai deixar de cumprir com a falta dela. Ela vai, além de cumprir sua pena, entender o que a levou a fazer isso.

O que é a Constelação Familiar

A Constelação Familiar Sistêmica foi criada pelo filósofo e psicoterapeuta alemão Bert Herllinger, em 1980, e permite a reconstrução da árvore genealógica de uma pessoa que possui um problema a partir da representação e visualização de seu sistema familiar. A proposta é que, ao visualizar os problemas, os padrões que aparecem nas famílias (doenças, alcoolismo, conflitos) sejam reconhecidos e se encontre solução e o reestabelecimento do respeito familiar em sua ordem básica. Hellinger destacou três ordens do amor que são os princípios norteadores do sistema familiar:

1 Pertencimento: a necessidade de pertencer ao grupo ou clã;

2 Equilíbrio: a necessidade de equilíbrio entre o dar e o receber nos relacionamentos;

3 Hierarquia: necessidade de hierarquia dentro do grupo ou clã.

Segundo ele, a desordem desse processo é concretizada na forma de sofrimento e doenças. Desvendar onde está essa desordem e visualizar os problemas, é uma forma de encontrar as soluções. “As leis dão toda a base dos relacionamentos e na constelação a gente vê onde foram rompidas”, conta Fernanda.

Sobre a inclusão e pertencimento, Fernanda destaca que se alguém é excluído, por exemplo por ser alcoólatra ou ter algum problema, e não se resolve esse conflito com a família, pode acontece de, de repente, aparecer alguém na família igual. Isso pode acontecer nas gerações seguintes. Sobre a ordem hierárquica, que deve ser guiada pela ordem básica que é pai e mãe (rei e rainha), filho ou filha (príncipe e princesa), Fernanda destaca que, em muitos casos, acontece a inversão dessa ordem, onde pais tratam os filhos como reis. “Esses pais não dão conta dessas crianças pois não conseguem ter um bom relacionamento social. E essa criança não conseguirá conviver com hierarquias, nem na família e nem uma empresa”, explica.

Já sobre o equilíbrio entre o dar e receber, vigente na lei do agradecimento, a máxima é que ‘se eu te faço um bem, você me devolve um bem’. “Quando isso desiquilibra, rompe as relações, em sociedade, entre irmãos ou em um casamento. Aquele que faz um mal precisa ter a chance de fazer um bem e querer isso”, ressalta.

A Constelação Sistêmica no cinema

Em fevereiro desse ano, a Disney/Pixar lançou o filme “Viva – a vida é uma festa”. No enredo, Miguel, um menino de 12 anos, deseja ser um músico famoso e tem esse dom. Porém, sua família desaprova seu sonho, pois há muitos anos seu tataravô abandonou a família para seguir a carreira de músico, o que deixou a todos na família com muita raiva da música, vendo-a como uma maldição. Disposto a seguir seu sonho, Miguel atravessa o mundo dos mortos em busca  da história do seu tataravô. Ao encontrar seu tataravô, ele ‘constela’  com a família toda  a questão de não gostarem de música. “Esse é um filme que explica certinho o entendimento sistêmico das gerações”, destaca Fernanda.

Exemplos de casos de constelação familiares

A consteladora relata três casos que foram resolvidos durante constelações familiares. Um deles é de uma moça teve seu irmão preso, pois se envolveu em uma briga de gangue. Ele deu uma pedrada em alguém, machucando-o, e o parceiro de gangue finalizou a briga matando o rival. O menino que deu a pedrada ficou preso seis anos e o amigo não ficou. A família lamentou e achou injusto. “Ao conhecer esse menino, por meio de uma Constelação, descobrimos que o pai dele  foi um assassino, matou várias pessoas e nunca foi preso. Então, o menino, de certa forma, pagou pelo pai. Isso é sistêmico, fica algo em aberto no sistema lá trás, e alguém lá na frente terá que cumprir o legado”, explica.

Outro caso relatado por Fernanda é de uma mãe e uma filha que brigavam pela guarda de uma criança. A filha, que tinha gerado o menino,  não queria deixá-lo sob os cuidados da avó. Já a avó, queria cuidar do neto, acusando a filha de não cuidar do menino, saindo para namorar, para festas, enfim, ‘saindo para o mundo’. Ao conhecer a história da família, Fernanda descobriu que essa menina não conheceu o pai. Na época, mãe trabalhava em uma cidade grande como doméstica e engravidou de um homem casado, que não assumiu a criança. “Ela pegou sua malinha e voltou para cá. Essa menina sempre quis conhecer o pai e a mãe disse que nunca permitiria. Aí começaram os conflitos em casa, até que a filha engravidou”, relata. Foi descoberto o que afligia esse sistema. A solução foi conversar com a mãe, mostrando que cada ser humano carrega metade do pai e metade da mãe e que ela tinha o direito de saber quem era seu pai, sua outra metade. “A gente conversou muito e ela aceitou, então, dizer quem era o pai. Ela viu na constelação o quanto essa menina sofria pois a metade dela não era conhecida. Imagina que se a mãe fala mal do pai, é como se metade dela fosse errado”, conta. Fernanda alerta aos pais que, quando uma criança ouve que ou seu pai ou sua mãe é ruim, ela se acha metade errada, e geralmente isso vai repetir na criança. “Ela vai repetir o comportamento que está sendo exposto para ela. Ela pensa (inconscientemente) eu te amo tanto que vou ser como você, porque independe do que dizem deles, é seu pai, é sua mãe”.

Outro caso que Fernanda relata é de uma moça que arrancava os cabelos compulsivamente. De noite, ela enrolava os fios entre os dedos e arrancava. Ao fazer a constelação, regatou-se uma memória de guerra que vinha da Ucrânia. Lá, eles arrancavam o topo do cabelo, faziam o  escalpamento (remoção da pele que cobre o crânio), e ela replicava o gesto que era a recordação de alguém de sua família. “A gente não herda só a cor do cabelo ou do olho, herda essas memórias, os grandes traumas de guerra, por exemplo”, enfatiza.